segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Conto pra distrair: ao meio

Jamais cogitou, sequer em seus devaneios mais remotos e despidos de todo senso objetivo que a impregnava, a possibilidade de vir a amar desesperadamente um segundo homem como amava o primeiro, sem que esses amores se entrecruzassem pelas artérias que inundavam de sangue e amor os diversos compartimentos de um mesmo coração.
Depois de assumir, não sem muito lutar contra essa certeza tão escandalosa, a segunda constatação foi natural e inevitável: o amor ao primeiro homem, por pura falta de uso prático, murchava lentamente como a gardênia branca esquecida sob o sol impiedoso. Atrofiava-se de tantos sonhos, afogava-se nas torrentes de sentenças não pronunciadas e pela contração muscular involuntária que persistia em esvaziar de todo amor o compartimento dificilmente preenchido.
Do espaço vago, nada se apossava. Restou um saguão despovoado, repetidamente encharcado e drenado pelo líquido vermelho que corria à revelia da vontade de mantê-lo eterno e intocável, como um salão de baile desativado onde ainda ecoam os passos da última valsa do último par.

Fez coro com Fermina Daza, acrescentando ao "pobre homem" um pobre de mim...

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Fora do eixo - ou voltando a ser Tereza

Escanteio a crescente pilha de projetos que me encaram enquanto retomo livros velhos de poesia. Absorta na segunda releitura do mesmo romance, perco as horas escrevendo mentalmente muitas páginas sobre a poesia que me desconcerta e o amor descrito que me maltrata. Encontro-me novamente sendo Tereza, que carrega um livro debaixo do braço como um código secreto para outra realidade possível, a mesma que bate à porta trazendo consigo todas as bagagens do mundo e um coração desfeito. Ainda a mesma Tereza que rabisca incessantemente poesias pelas pernas, pelos braços, pelo dorso nu, para finalmente convencer-te a findar o péssimo hábito de interromper pela metade as leituras - dos livros, dos corpos. Ainda que Tomás, ainda que a proximidade não signifique o pertencimento, ainda que adormecer no sofá não seja a porta de entrada para um novo - e teu - mundo. Ainda que estar lado a lado possa não representar absolutamente nada.
Continuo sendo Tereza: rabiscando-me, explorando-te. Desenho em mim toda poesia que os autores dedicaram, sem saber, ao cheiro da tua pele e ao hálito dos teus beijos. E quanto mais te procuro, mais me perco e me desencontro e desespero. Quanto mais te aprisiono, mais te esvais. E mais aumenta meu desconcerto pelas histórias nunca contadas, as memórias nunca ditas, os amores jamais compartilhados. Como meu Tomás, te espero resignadamente decidir voltar - mesmo que jamais tenhas partido.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Para as sedes intermináveis

(enquanto Bethânia me diz que amor é sede depois de se ter bem bebido)

Primeiro foi a sede absurda, o coração de deserto, o pudor abandonando a língua. Depois foi o vazio, o espaço infinito e o tempo incontável naquela dilatação de horas, dias, meses e anos que jamais se cansavam de passar, de agoniar, de irromper pela fresta da janela por onde entra um vento terrível que faz lembrar a falta que tem um abraço do tamanho certo nas horas que o frio invade a casa, o corpo e que se arrasta pela mobília. Depois foi a língua, novamente ela. Não aquela do léxico bem definido, recheado de símbolos em forma de letras, que tentam significar os sentimentos e os objetos que nos rodeiam ou que fazem tanta falta de nos rodear; foi a língua feita de músculo, de papilas, de pele, banhada em saliva, sem freio algum em falar dos sentimentos que a outra tanto se esforça para aglomerar e classificar e definir. Essa língua encontrada em tantos poemas relidos hoje e que trouxe de volta a sede primeira, o vazio, a lua e o oásis.
Depois da língua, veio a lua. Cheia, amarela e brilhante, riu-se do sofrimento acompanhado através do vidro da janela por onde espreita e gira no ritmo lento da Terra, até se posicionar com aquela mesma inclinação de revolver marés, avançar águas, esquentar corações e trepidar fogos acesos à beira do mar, perpetuando o movimento de esvaziar certezas jamais compreendidas. Da língua e da lua fez-se o ouvido. O ouvido salgado do mar revolvido pelo movimento lunar, mar que brotava dos olhos, língua que lambia a maré primeira dos olhos verdes que vertiam sem cessar. Ouvido testemunho de tantas confissões da língua falada e de tantos encontros às escuras com a língua viva; ouvido que cansara de procurar significações em vão a cada troca de olhares para a qual não era convidado.
Depois da língua, da lua, do ouvido e dos olhos verdes, veio o oásis. O vácuo do desprendimento, a angústia da sede jamais saciada, a adrenalina ruidosa de batidas cardíacas ensurdecedoras. Veio o tempo, incapaz de abrandar a dor que há tanto transmutara-se em conformidade. Veio a lua, em seus ciclos repetidos, dar mais uma vez a sua face mais redonda aos olhos admirados desde o chão. Vieram as flores, mais de luto que de recomeço. Veio novamente a língua, cortada, calada e muda, e dela brotou um grito surdo. E a saudade, interminável, fez-se paraíso da memória cíclica, irrepetível, incomparável. 
Verte seus desertos nos oásis das salivas jamais bebidas.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Um vinho, uma vírgula, o ponto: o porvir

Um dia eu juro que ponho um ponto final nessa loucura que há tanto me atormenta, que me quebra em dois e me provoca e reinventa inteira. Prometo que jogo fora as recordações - que não são mais físicas, se reduzem ao ilimitado campo da memória -, que aprendo a escrever sem evocar cheiros e sem mencionar as palavras olhos e perfume. Um dia aprendo a bailar sozinha no ritmo da música, com a garrafa de vinho na mão, sem procurar no vazio do vento um outro corpo que jamais encontrei. Um dia eu porei pontos, todo dia sabendo que a hora está cada vez mais próxima. Enquanto isso, abuso das vírgulas que nos permeiam na dança das intenções implícitas, marco livros de poesias que falam de vagos olhos e línguas e passados e futuros. Enquanto isso, confundo as letras, me perco nas frases que nunca disse, encontro novos símbolos em cada reticência despretensiosa. Adio a despedida como quem tem consciência da sua incontestável proximidade.

Um dia eu juro que ponho fim nesse amor. E afogada na angústia de ter que me obrigar a esse momento, ponho a cada dia um pouco mais de fim em mim mesma.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Desfolhado

Despiu-se, lentamente, de todos os prazeres ocultos que ainda insistia em carregar. Foi desvencilhando de suas entranhas a escrita, as frases meticulosamente formadas para dar sentido às múltiplas vidas presentes, passadas e futuras, enterrando a sete palmos as sutilezas literárias que ainda persistiam nas pontas dos dedos. Com as chaves da casa, arranhou os álbuns que a acusavam de gostar de amar, mesmo que um amor sem objeto. Esvaziou os bolsos dos pequenos retalhos de papel com letras anotadas à menor lembrança bonita. Abandonou o diário vermelho, que também poderia suscitar desconfiança. Sentiu-se como uma frondosa árvore submetida a sucessivas e destruidoras podas. Estava na casca, sem veios, sem sulcos, sem folhas nem frutos. Marrom, imóvel, inanimada, como a árvore que mata seus próprios frutos na busca por manter-se viva, sobreviveu. Jamais florida, jamais esverdeada, jamais feliz.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Atrapado

Faltam dedos nas mãos para não se perder em tantos anos de saudades. Os desencontros já não se contabilizam em semanas nem meses, somam-se em décadas frias e confusas pela passagem do tempo. Faz tantos anos que o espaço destinado à tua falta transbordou, que tua presença se esparrama pelos cantos, pinga pelas frestas dos armários e deixa um rastro inconfundível pelo chão.
Mesmo assim, continuo com o ritual iniciado sabe-se lá há quanto tempo, tanto quanto meus dedos não sabem comportar. Ainda tempero meu corpo com a baunilha que roubo da cozinha, unto a pele no mesmo alecrim, banho cada vinco e tatuagem com os aromas que fizeste cultivar em mim. Pinto as unhas do mesmo céu estrelado, saboreio a mesma goma de sabor odioso e repetitivo.
No somar de anos e resultar em décadas, em pleno sonho me encontro repentinamente em um baile de gala. Descubro ser eu a anfitriã entre tantos rostos desconhecidos. Meu perfume é o mesmo, as minhas mãos ainda têm os mesmos dedos pequenos e finos, o mesmo anel, mas é visível a passagem do tempo. Entre tantas sombras e vultos sem significado algum, reencontro teu rosto tão conhecido e me surpreendo ao perceber a continuidade da nossa história, em outro tempo, em outro lugar, em mim.
Somos nós, a filha nascida, os outros filhos que reconheço sem ainda habitarem esse mundo, os mesmos gestos, o olhar que paralisa e faz gelar. Sou, em ti, a nossa história completa. Meu tom de voz, naturalmente agressivo, torna-se doce na tua presença; minha rouquidão vira música e me reconheço apenas pela tua familiaridade com meu corpo, que já há tanto não me faz habitar tão confortavelmente quanto antes; meus olhos refletem mais verdes ao cruzar com os teus, meus lábios te esperam, como se jamais tivessem te encontrado antes.
Envolta no nosso abraço interminável, o encontro de tantos descaminhos e tanto amor recolhido pelo caminho. Vestida pelos teus braços, complementando tua pele, somos somente nós e já não importam as décadas, os séculos, os milênios, os mundos. Já não importa as bagagens que trago, sou abraçada com todo meu passado, meu futuro e meus planos. Meus medos se perdem pelo caminho, já não importam as estradas paralelas que tivemos que trilhar até encontrar uma rota comum.

Meu sonho, teu, de encontrar-te ao abrir a desconhecida porta numa vida qualquer. 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Um dia, talvez, Alice

     Gostaria de ver teus olhos, Alice. Perco minutos preciosos nessas semanas corridas de estudos imaginando como serão teus cabelos, teu sorriso, tuas sombras. Descobrir tua figura enigmática que me perturba a cada poema em que leio teu nome, conhecer quem merece ser Alice diante de tantas belas palavras. Gostaria de conhecer teus sonhos, Alice. Saber tuas angústias, teus anseios, as linhas do teu rosto e as marcas das tuas mãos. Conhecer-te, imitar-te. Para chegar a ser Alice, merecedora de todos os sonhos e reverências do mundo; para dedicar a ti, Alice, o que me restaram de sonhos e angústias e desejos no mundo.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Querido Diário

Eu e minha tela branca à frente. Puxa, faz tempo que não falo como dizem os poetas, com o coração. E realmente não é pra ficar bonito. É num mar de soluços que me encontro. Quem dera fosse de rir. Acredite, eu costumava gostar da minha companhia. Eu costumava me deliciar em manhãs com meus cafés múltiplos e cheirosos que se acumulavam em fileiras de xícaras coloridas na minha escrivaninha branca, e o Sol ia beijando devagarinho meus papéis enquanto eu fazia o que tinha que fazer, seja lá o que fosse. Puxa, eu gostava mesmo de mim há uns anos atrás. Como era bom aproveitar uma música e planejar simplesmente o que eu iria fazer no final de semana. Como era boa a vida simples que eu levava. Há dois anos atrás, parece que nada ficou tão simples assim mais.
Dizem que quando a gente se apaixona, a gente esquece da gente. E o tempo não é mais como era antigamente. Ele muda, pra uns passa mais rápido, pra outros simplesmente para. Eu não sei como foi comigo, mas sei que com 1 mês parecia que nos conhecíamos há 10 e com 1 ano depois de tanta confusão, sentia que tinham sido duas vidas terrenas. Esses dois anos já se perderam na minha cabeça, a contagem ficou louca e minhas memórias meio que se atravessam umas pelas outras, dançando tristemente pelo passado. Ora essa... Tanta coisa boa vivida pra se sentir grata, e, sim, em momentos de paz eu me sinto grata. Mas, bem, como eu controlo o tempo do restante da minha vida? Como pensar nos próximos 10, 100, 1000 meses que eu (espero) viver. Como pode ser tão doída a imagem de mim mesma sem ti? Será que isso é amor? Será que se sofre por amor? Me disseram que o amor era uma coisa boa... E agora?

É engraçado e estúpido se apaixonar. É engraçado porque lembro das minhas escolhas nada racionais e fico pensando no porquê de tudo isso. Por que sentia a tamanha necessidade, parecida com a que sinto agora, de ir atrás daquele objeto tão desejado? Por que nunca aceitei o que era tão óbvio? Que não poderia dar certo. E isso sempre foi um fato, não adianta. E eu sabia, no fundo, eu sabia. E por que insistia tanto? Eu simplesmente achava que tudo era possível, que era passível de mudança e ressignificados. Eu acreditava como uma criança que crê em Papai Noel. Com todo o meu amor, minha força e meu otimismo, nunca me faltou coragem para arriscar. Eu queria me jogar. Queria morrer de amor. Queria. E agora, as minhas cinzas me entristecem. Não há glória em finais tristes. Ninguém me parabenizou ou bateu palmas. Não ganhei troféu ou medalha. E nem uma carta, sequer. Na minha porta não bate ninguém e minha companhia parece estar vivendo em um mundo sombrio. Falam-me de liberdade e ela tem uma cara bem desafiadora para mim. Eu não tenho nada a perder e isso nunca soou tão estranho... 

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Interminável Escuridão

Passei a noite em claro, encarando a lua cheia que banhava a janela, para organizar tudo que preciso te dizer, de uma forma mais ou menos coerente. Contar como as noites se tornam especialmente silenciosas quando não contam com a melodia tranquila da tua respiração ao dormir, enquanto contabilizo estrelas cadentes. Contar como me envolvo em histórias de todos os tempos e todos os personagens, mesmo sem querer, para te perceber em cada romance frustrado e te descobrir me esperando na minha próxima contradição. Contar que toda profundidade de olhares, memórias, aromas e gestos torna-se superficial quando projetadas à nossa tão entranhada relação.
Joguei pequenos punhados de areia pela janela do sétimo andar, uma para cada pendência a resolver. Poderia ter soterrado o mundo nessa noite. Joguei um punhado para cada amor passado, para cada caminho que percorri e para cada atalho que me fez chegar até teus olhos, tão distintos de todos os olhos que já haviam percorrido minhas marcas e o meu corpo. Teus olhos que não se esquivam de me encarar e não deixam um momento de me dominar. Para minhas turbulências individuais, mais um punhado de areia, que se esvaiu lentamente entre os dedos. Sei da minha constante retomada do passado, sei das tuas objeções e sei das nossas diferentes percepções. Sei ainda que poderia escrever hoje de forma menos superficial do que faço.
Prometi que não me estenderia ao amanhecer. Olhei para baixo, toda a terra quase imperceptível pela altura. Eu não tinha medo da distância que me separava do solo. Findo o arremesso, pois não sobrara grão de areia, restava arremessar as flores, os frutos, as folhas repletas de distintos aromas. Cogitei juntar meu corpo aos punhados atirados ao vento. Me lancei sobre o parapeito, mas impediu minha visão o primeiro raio de sol. Na cama teu corpo, teus olhos que cerrados não expressavam todo o impacto que tinham sobre mim, tuas mãos conhecedoras de cada vinco do meu ser. Dormir, ao teu lado, mais uma noite. Sem os demônios que atormentam, sem os dilemas que angustiam, todos desprezados feito porções de terra ao vento do sétimo andar. Ao menos até o sol se por outra vez...

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Cozinhar como Oração

Levo o coração na ponta dos dedos, no brilho dos olhos, nas papilas da língua. Levo o amor em toda minha tentativa culinária, em qualquer utensílio que vou estrear, em toda xícara de açúcar despejada sobre a manteiga batida. Meu coração está esfriando, em cima do forno, esperando para ser desenformado. Ele hoje foi tingido com beterrabas, daqui a pouco será temperado com curry; vai receber recheio de creme azedo e ser enfeitado com morangos frescos. Meu coração é do tamanho de todas as provas da comida que faço. Cozinhar é minha oração diária, a prece que secretamente diz eu te amo e faz desse amor mistura com um fouet brilhante. Te provando, te reinventando e te alimentando com meu amor, meu coração cresce. Cresce como o fermento caseiro que deu tão certo no bolo de hoje. Cresce com uma vontade infindável de declarar meu amor.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ojos Verdes



Porque sempre que eu escrever qualquer coisa que precise descrever um par de olhos lindos, eles serão verdes. Nem azuis como o céu do meu pai, nem castanhos e cheios de brilho como os da minha filha. Eles serão verdes, de um verde escuro, manchado, como que corroído pelas histórias e pelo amor que passou por eles. Serão verdes como os do meu avô ou, que presunção, verdes como os meus olhos verdes. Serão verdes como olhos inesquecíveis com os quais todos esbarramos na vida...

Partida

Não sei. De repente o barulho da chuva me despertou a vontade de traduzir-nos em palavras.
O relógio se quebrou... Na dura realidade da nossa despedida, em que cada passo adiante te levava para mais longe do que há um instante era meu. Como conter tamanha emoção, a de te perder? Aprendi que é cuidando que se ama, e que se ama, cuidando. Ao saíres pela porta perdi mais do que um amor. Não sei bem o que era. Mas é como se perdesse mais do que podia realmente perder. No dia seguinte era difícil saber quem eu era. Era difícil limpar minha mente. A cada minuto o que vivi se tornava passado e as memórias eram cada vez mais pesadas. Hoje, porém, me esforço para lembrar-me do teu rosto. Rosto, esse, que foi tão adorado, tão idealizado. E eu amava, amava e amava. Não me satisfazia nunca. Eu sempre queria mais. Eu sabia que uma vida ao teu lado não me satisfaria nem por um momento sequer minha vontade de te amar. A verdade é que eu nunca me completaria com a sobra de algo que não encaixava bem. Por isso, gastava minhas horas me fundindo a ti, para ver se de algum jeito me davas o que eu precisava. O que eu achava que precisava. E o que era mesmo? O que era mesmo que eu precisava? Eu não sei. Nunca soube. E então me apegava nas migalhas que eu tinha. Minhas adoráveis migalhinhas. E eu amava, amava e amava.

terça-feira, 24 de junho de 2014

No Altar

Bebia vinho, contrariando a recomendação médica, que a proibia de beber durante o tratamento. Aproveitava as receitas trimestrais para encher os bolsos de antidepressivos e degustava os comprimidos durante todo o dia, como se fossem balinhas coloridas de açúcar ou pequenas doses de entusiasmo. Perdera as contas de quantos mastigara nas últimas horas, envolta nas brumas da bebida e na suave confusão dos tempos. 
Lembrou da única vez, em tantos anos, em que pôs os pés em uma igreja. Ele fê-la visitar uma das grandes, imponentes, com aquela luz dourada que emana dos seus castiçais de velas falsas. Fê-la encostar no marco de entrada, acariciar a madeira das portas e bancos, percorrer com os dedos cada detalhe trabalhado nas superfícies pintadas de dourado, falar baixinho, chegar perto e sussurrar no ouvido. Ele contava a história do lugar. Fez com que ficassem à distância de um par de lábios imóveis, impotentes, desencorajados. Logo ela, que odiava os simbolismos religiosos e toda ausência de referências que a provocavam, pisou em solo santo levada pelo argumento da beleza do lugar. Levada, na verdade, por ele. Por não conseguir resistir àquele par de olhos verdes e insistentes. Por tudo que levá-lo ao altar numa manhã ao acaso poderia significar.
Completamente entregue à memória, conseguiu sentir o odor do sebo das velas próximas ao altar, relembrar o roçar proposital dos braços, a caminhada lado a lado ao atravessar a igreja. Reviveu seu cheiro, mistura de perfume com a goma de mascar que nunca jogava fora. Entreviu, escondido nas imagens do altar, um deus irônico, no qual não acreditava, que ria ao vê-la completamente entregue naqueles degraus, diante de todas os símbolos e ídolos para quem não rezava e não pedia permissões. Desejou ajoelhar-se ali mesmo, não para pedir perdão aos santos e ao deus que voltara às suas ocupações, mas para pedir àquele homem que ficasse. Desejou pegar-lhe a mão e pedi-la para sempre, segundo a lei desse mesmo deus, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença.
Recobrou a consciência algum tempo depois. Se descobriu entre o cheiro persistente e o aperto de uma saudade desconhecida. Totalmente perdida, não soube dizer se realmente se ajoelhara diante do altar, não conseguiu saber se o deus estivera realmente lá. Só conseguia pensar que, tendo se ajoelhado e agora acordando sozinha em uma cama imensa, a resposta deve ter sido não. Mais um motivo para não crer naquele deus de altares dourados, nem naqueles olhos de perdição. E procurou mais pílulas para esquecer a dor que afligia o peito.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Das Sensações Cotidianas

Essa sensação diária parecida com leves cócegas que dão vontade de abrir as bochechas e mostrar os dentes deve ser, na verdade, a coisa mais próxima daquilo que chamam felicidade. Essa sensação vem acompanhada, em mim, do desejo de fechar os olhos por um só segundo. Ela acontece quando fico acordada até mais tarde e, ao deitar, encontro um par de pés quentinhos para me enroscar no rigor do inverno. Acontece quando consigo ver uma pequena criança aprendendo a vestir toda a roupa sozinha. Acontece quando saio e alguém desconhecido me abre um sorriso. Acontece quando ouço músicas que marcaram a vida, acontece quando ouço músicas que não significam nada. 
Esse transbordamento escapa pelo sorriso, contamina os dentes e abraça as orelhas. Chega com um café inesperado enquanto escrevo, chega com a expectativa de amanhã festejar com os amigos. Chega quando saio para procurar belas árvores para lembrar dela. O sorriso abre quando, um certo dia, percebo que alguém que já amei muito hoje ama outra pessoa. E é amado. E isso não acende nenhum desespero, nenhuma posse, nenhum rancor. Só gera o transbordar. Gera sorrisos. Gera mais amor. E isso tudo não pode ter outro nome que não seja felicidade...

terça-feira, 10 de junho de 2014

De uma tarde memorável (ou: para Ana - porque não consigo terminar "A Náusea")

Era uma tarde normal como quase todas as outras, nublada e um pouco mais fria que o esperado para os últimos suspiros de abril. Era uma tarde tão absolutamente ordinária que, por não trazer consigo nenhuma grande expectativa, me marcou de um jeito incrível. Precisava comprar um caderno, e não sei exatamente em que momento um banco no meio do calçadão, guardado por uma árvore que dançava ao intenso vento, me convidou para sentar. Era o banco em frente à papelaria. E ali, Ana, o dia mais ordinário dos dias começava a marcar suas impressões em mim.
Um moço pediu licença, sentou ao lado e abriu um livro. Espiei, era poesia. Enquanto sentada, esperando a chuva finalmente cair ou alguém que nunca chegaria, vasculhei a bolsa e encontrei "A Náusea". Eu já estava, como sempre, adiantada: olhei o relógio e ainda faltava quinze minutos para as cinco horas. Decidi permanecer ali, lendo, esperando sem saber bem pelo quê. Recomecei a leitura, ainda no início do livro, nas primeiras sensações de vertigem do personagem principal. De repente, três pessoas se instalaram ao lado da papelaria, duas meninas e um rapaz que puxaram uma escaleta da mochila, estenderam um pano e começaram a cantar e tocar.
Cantavam em espanhol, as músicas mais lindas que já ouvi. A voz da menina que interpretava as canções tinha um quê de choro, uma dorzinha escondida no fundo da melodia. Em espanhol, o idioma com que meu ouvido já se familiarizou por aqui e que me fez lembrar de casa mesmo estando longe. Um desavisado conhecido poderia achar que eu armara toda a beleza do canto e da cena. E, com a música tocando, o moço lendo, o vento ventando e a chuva finalmente aparecendo, foi impossível me concentrar na leitura. Minhas mãos suavam, minha perna tremia e meu coração parecia querer bater fora do peito. O som fino da escaleta era o único capaz de concorrer com o barulho ensurdecedor do meu próprio peito.
Senti ali, Ana, a tal náusea. Como uma vertigem que me puxava para baixo enquanto me deixava inerte. Era impossível me mexer, sair daquela cena, eu estava anestesiada. Era impossível me proteger dos pingos esparsos que insistiam em me encontrar embaixo da árvore. Já era impossível esquecer aquela tarde.
Não consegui comprar o caderno. Quando consegui me mexer, foi para finalmente entender que eu não tinha razões para esperar. Não havia porque estar ali. Ninguém jamais chegaria a tempo. Encontrei um abraço amigo, ainda nauseada, com o coração batendo na porta do ouvido, e assim o mundo voltou para o seu eixo. Mas não consigo abrir novamente o livro. A cada linha, me remeto novamente àquela tarde, tão linda, tão única, tão vertiginosa. Precisaremos de outros livros para debater.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Conto pra distrair: na pele

Tinha um fraco antigo por marcas. Ainda criança, demorava os dedos nos vincos formados na pele pela pressão das roupas. Despia-se e começava a carícia sobre os relevos. Os tornozelos, com a saída das meias, as tênues marcas ocasionadas pela pressão dos sapatos calçados o dia todo, a depressão levemente rosada que se prolongava depois de ter o pulso apertado por um elástico. Gostava da marca que permanecia no corpo. Descobriu gostar também das marcas nas outras pessoas. 
Depois percebeu também sua fragilidade diante de tatuagens. Não tinham relevo, na sua maioria, mas causavam nela o mesmo entusiasmo e deleite que os vincos profundos. Os desenhos, as cores, os significados e as histórias por trás de cada marca a faziam perder-se por horas nos contornos de uma pele conhecida. Desejava desvendar cada dono por trás de uma imagem perpetuada na pele, penetrar em cada entrelinha contida nas hesitações da mão do desenhista, dos sentimentos que permeavam cada volta, cada sombra, cada luz. Apaixonou-se por uma tatuagem, um dia, e por seu dono como consequência. Precisava estar perto daquele desenho desconhecido, daquela pele marcada. Sabia a descrição, porém jamais fora convidada a tatear seu corpo, a desvendar suas marcas. Tinha certeza que seria capaz de reconhecer aquela tatuagem nunca vista entre tantas outras desconhecidas, tantas as horas que ganhava perdendo seus dedos imaginários em cada contorno inexistente.
Notou, pouco tempo depois, que sua paixão expandia-se para além das marcas efêmeras da pressão sobre a pele e das marcas sem relevo dos desenhos escritos para sempre na pele. Percebeu admirar as cicatrizes. Passou a vasculhar as pernas, tão postas à prova durante a infância, buscando as suas marcas. Encontrou vestígios de si nos joelhos, nos tornozelos, nos dedos das mãos, no pescoço, nos lábios, nas pernas, no ventre. Encontrou uma tatuagem que seu próprio corpo havia se encarregado de fazer: uma marca de nascimento em formato de coração, no interior da perna. Descobriu-se outra, contada a partir das cicatrizes. Passou a apreciar as leves irregularidades das estrias que marcavam as pernas, a explorar sua história através das cicatrizes deixadas pelas histórias. 
Lembrou da tatuagem nunca vista e que, naquela mesma pele, havia uma cicatriz. Dividida em duas, rasgada por um bisturi, desejou refazer seus contornos recém fechados com a suavidade das pontas dos dedos. Desejou curar as feridas pelo toque, beijá-las até que seus extremos se tornassem conhecidos. 
Do amor pelas feridas e do desejo de acariciá-las até a cura, percebeu gostar também de rever as cicatrizes da alma. Passa os dias mensurando, revivendo e explorando toda e qualquer marca do coração. Sem objetivos, sem pretensões, sem nostalgia nem remorso. Explorando, como um carinho nas pernas marcadas, no pulso atado, como uma forma de aliviar a pressão das marcas jamais feitas. Descobrindo seus desenhos invisíveis, na impossibilidade de tocá-los ou beijá-los até a cura, desejou escrever. E hoje escreve, como quem acaricia um corpo, como quem desbrava uma tatuagem em seus contornos. Escreve para acalmar a alma.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Terceira Pessoa

Rendeu-se à tentação de abrir novamente o cartão vermelho. Depois de dois anos, tinha a esperança que as duas frases numa grafia perfeita de caneta azul tivessem desaparecido do papel. Sentiu-se uma intrusa no meio de um passado que desconhecia, de amores que ignorava e de tanta história que veio antes dela. Há muitos anos não sentia uma sensação parecida com ciúmes. Sentiu-se ferida, um sentimento que não era nem raiva nem dor a deixava surda e embrulhava o estômago. A frustração pelo tanto que dizia e pelo pouco que tudo ecoava.
Passou a noite entre sonhos e imaginação, sem distinguir direito quando estava dormia ou delirava. A palavra "tesão" retumbava insistente na cabeça. Não havia um nome, um rosto, uma história. Havia duas frases numa letra invejável, reticências cheias de insinuações e tesão, havia uma letra e um ponto. Havia, explícito, um desejo ali. Havia tesão e não restava mais nada. A angústia do desconhecido voltou, para ficar. Conseguiu imaginá-lo desejado, amado, retribuído. Frustrou-se ainda mais, frustrou-se pelo que lhe faltava, pela informação incompleta. Não conseguia mais tocá-lo. A lacuna era imensa, uma fenda que se estendia sob os seus pés e deixava aberto um abismo com difuso, enevoado, incompreensível.
Jamais seria parte daquilo tudo, nenhuma daquelas letras falavam dela. Nenhuma daquelas frases jamais a pertenceu. Ali, seria sempre a terceira pessoa. Impossível, inexistente, confusa. E a terceira pessoa nem sempre é o indivíduo número três, às vezes é só aquela pronta para dissimular a primeira do singular.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Conto pra distrair: Pós-operatório

Enfileirou os cartões bancários. Anotou as senhas de cada um. Releu as antigas cartas de amor vagarosamente. Fechou as cortinas do quarto azul. Organizou todos os papeis. Deixou sobre a agenda um envelope, antes de bater a porta atrás de si. Tinha certeza que poderia morrer, que algo poderia dar errado. Seu pessimismo era imbatível e não sentia medo, apenas vontade de ter tudo organizado caso o que cogitava acontecesse. 
Quem o via organizando meticulosamente o quarto imaginava que se tratava de uma operação de alto risco, de um tumor maligno em estágio avançado. Ia retirar as amígdalas. Terminou o ritual de despedida, vestiu o traje hospitalar e esperou. Olhou longamente pela claridade da janela de vidros foscos e imaginou que poderia ser a última vez. Pensou que morreria satisfeito. Sem ter feito nada de grandioso, talvez com a trajetória um pouco abreviada, mas contente. A carta estava sobre a agenda e as recomendações claras de enviá-la no dia do seu enterro.
Declarava seu amor secreto, desde aquele primeiro encontro casual. Não sabia porque havia se apaixonado, não sabia porque jamais fora capaz de esquecer, mas sabia o motivo de nunca ter se declarado: estremecia ao cogitar a rejeição. Podia descrever seus dedos finos, as unhas lisas, uma leve marca no pescoço, detalhes captados ao acaso, quando a luz ofuscava a paisagem e só aquela visão era possível. Podia desenhar a expressão dos olhos ou falar demoradamente sobre as pernas que balançavam ou o hábito irritante de passar repetidas vezes as mãos no cabelo. Podia reproduzir mentalmente o timbre da sua voz, podia servir suas comidas preferidas, descrever a tatuagem ainda inacabada. 
Despertou da anestesia. Pensou que estava vivo, mas que o pior estava por vir. Poderia morrer pelas complicações, por uma infecção, via mil novas oportunidades de deixar o mundo. Pensou, pela primeira vez, que talvez desejasse morrer. Mais do que ter consciência da possibilidade, desejava a morte, o fim, o túmulo, a lápide, o frio e a leveza. Desejava mais não ser. Dizia ser pessimista, mas nesse momento ainda grogue do pós-operatório, concluiu que era apenas covarde. Tinha medo do que viria depois, medo de arriscar, de amar, de sofrer, de ser, de não ser. Preferia a inexistência às incertezas de estar vivo.
Sobreviveu à recuperação, contrariando suas piores expectativas. Chegou em casa e, apesar de adiar o máximo que conseguiu esse momento, teve que abrir a porta do quarto. Reencontrar as cortinas fechadas, a cama meticulosamente arrumada, os cartões enfileirados, os papeis organizados, as cartas de amor lidas e o envelope sobre a agenda. O envelope... Sentiu vergonha de si mesmo. Desejou, mais do que nunca, morrer. Talvez um ataque cardíaco, que não desse chances de salvação. Sentiu-se sufocar, mas sem parar de respirar. A dor fazia ter vontade de vomitar. Vontade de curvar-se e chorar. Chorar todos os medos, todo o amor que poderia ter sido, todas as histórias que nunca saíram da imaginação. Releu a carta, a declaração, se imaginou descendo a sete palmos enquanto a surpresa arrebatava o leitor de tamanha revelação.
Recobrou o fôlego.
Respirou.
Tomou uma decisão.
Fora tudo efeito dos remédios.
Estava delirando.
Não esperou que a carta terminasse de ter queimada, com medo de se atrasar para os compromissos meticulosamente agendados. Temia que o ônibus pudesse estragar no meio do caminho e arruinar a programação diária. Voltou a temer, religiosamente. Voltou à covardia. Voltou ao que não era, agora sem as amígdalas. Não teve medo de morrer, mas não tinha coragem para viver. E o fogo consumiu o segredo que nunca revelaria.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Conto para distrair: o garçom

Trabalhava há quinze anos no mesmo lugar, servindo as mesmas mesas e vendo a noite cair pelas janelas de uma esquina movimentada da cidade. Era garçom de um boteco importante, reconhecido pelos clientes fiéis e acostumado com a intensa correria de terça a domingo atrás do longo balcão de madeira. Casado há dez anos, conheceu a esposa no mesmo balcão escuro, pai de duas crianças e com uma insaciável curiosidade de viver outras experiências. Aprendeu a viver outras realidades enquanto servia bebidas para casais que escolhiam as mesas mais afastadas para ter sua conversa final. Aprendeu a diagnosticar, com folga, quais duplas ali entravam para dar fim aos seus relacionamentos, na segurança de uma mesa de distância do calor do corpo do outro. Com o tempo, começou a identificar também os rompimentos pelas bebidas, pela postura, pela comida não compartilhada. E fez do ouvido afinado uma arma para alimentar seu desejo de viver, enquanto via a vida passar pelo esverdear do semáforo onde ficava o boteco.

Na chegada de um casal, conseguia enxergar o desconcerto, o silêncio constrangido, apostar quais bebidas pediriam, a separação das comidas, das comandas, das mãos. E então se aproximava. Sempre escolhiam a mesa mais distante, o andar superior, a mesa com duas cadeiras opostas de frente para a vidraça. A visão para o andar de baixo era uma boa fuga de quem não queria olhar nos olhos ao chegar no fim. Atendia os pedidos, a bebida levemente alcoólica nos casos de encorajar as declarações de amor engasgadas, a secura da água sem gás para quem pretende encerrar o assunto antes de esvaziar o copo. A porção de alimento para quem desejava pretextos para alongar a conversa, a negação daqueles que não buscavam mais que uma resposta definitiva antes de sair dali. E ele se acomodava atrás, olhos no andar inferior, ouvidos nos romances inacabados da mesa logo ao lado. Caneta na mão, fingindo que fazia contas, conseguia anotar trechos do enredo, entender quem havia sido traído, quem havia desistido, quem cansou da relação e quem nunca a deixou existir. As mesmas pessoas que voltavam lá diversas vezes para terminar diferentes relacionamentos, e todas as histórias se encaixavam como se bailassem perfeitamente harmônicas entre a fumaça da fritura e o hálito de cerveja.

Um dia, resolveu dar fim no bloco onde anotava os desfechos das histórias e poucos dos nomes que conseguia compreender entre sussurros, soluços e vozes embargadas. Sem coragem de se desfazer de todos aqueles anos de atenção às intimidades alheias, escreveu um livro. Alterou os nomes, cruzou as histórias que coexistiam nas consecutivas folhas de papel e ficou famoso. Finalmente deixou de ser "o garçom". Passou a ser reconhecido pelo nome e foi premiado pela realidade das suas histórias. Muitos daqueles que lá terminaram suas histórias, ao seu lado, se identificaram com seus dramas e (des)amores, mas nunca conseguiram perceber suas próprias vidas contadas pelo punho do homem que assinalava xis nas comandas. Quando insistiu ao chefe para permanecer servindo o segundo andar do estabelecimento, foi chamado de louco. Mal sabe ele que, enquanto houver vidraças para dissimular, amores por terminar e uma mesa para afastar, o garçom sempre terá histórias pra contar.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Voltar (ou tanto tempo depois)

Mais uma segunda-feira.

Voltar e te encarar depois de tanto tempo, ainda confessor dos meus maiores segredos. Voltar e ler em ti os mesmos sentimentos, tão conhecidos e ao mesmo tempo tão novos ao serem relidos através da luz de um sol poente. Te reler sob as mesmas árvores, o mesmo banco. Te ouvir sendo meu eco, como se estivesse logo ali do outro lado da mesa. Ter que deitar para olhar por baixo as folhas embaladas pelo vento do fim da tarde que me sopram tudo o que já te disse e que jamais permaneceu em segredo. Ler em ti as tão velhas novas angústias diárias, o amor tão desfeito, refeito e malfeito. Te beber inteiro em um só gole, sem jamais me saciar nem me dar um porquê. Voltar pra ti, depois de tantas folhas jogadas fora, tantas canetas gastas, tantas músicas mal empregadas, tanto pouco sofrimento mal sofrido, depois de tantos outros amores. Te ver abrir os braços, poder quase sentir teu cheiro, e me aceitar de volta mesmo depois de tanto tempo posto fora. 
Tanto tempo imaginei o que te escreveria ao voltar e nenhuma palavra restou. O cursor permanece piscando, reticente, como há cinco anos. Falta tanto que ao escrever no diário só sobrou a frase "hoje fiz sopa". Falta tanto quanto a falta que me fazes. Falta tanto quanto ter que te escrever mensagens cifradas para dizer que tudo vai voltar ao seu lugar. Falta tanto quanto poder te escrever tudo o que senti nesses últimos dias e meses e ano. Desaprendi as despedidas, fico cada vez pior na arte de te dizer adeus. Meu texto não termina, e só me resta te dizer que hoje fiz sopa e que, mesmo que eu não volte mais, vai ficar tudo bem. Pelo menos é isso que me convenço diariamente.

É só mais uma segunda-feira, dentre tantas outras que virão...