terça-feira, 20 de maio de 2014

Conto para distrair: o garçom

Trabalhava há quinze anos no mesmo lugar, servindo as mesmas mesas e vendo a noite cair pelas janelas de uma esquina movimentada da cidade. Era garçom de um boteco importante, reconhecido pelos clientes fiéis e acostumado com a intensa correria de terça a domingo atrás do longo balcão de madeira. Casado há dez anos, conheceu a esposa no mesmo balcão escuro, pai de duas crianças e com uma insaciável curiosidade de viver outras experiências. Aprendeu a viver outras realidades enquanto servia bebidas para casais que escolhiam as mesas mais afastadas para ter sua conversa final. Aprendeu a diagnosticar, com folga, quais duplas ali entravam para dar fim aos seus relacionamentos, na segurança de uma mesa de distância do calor do corpo do outro. Com o tempo, começou a identificar também os rompimentos pelas bebidas, pela postura, pela comida não compartilhada. E fez do ouvido afinado uma arma para alimentar seu desejo de viver, enquanto via a vida passar pelo esverdear do semáforo onde ficava o boteco.

Na chegada de um casal, conseguia enxergar o desconcerto, o silêncio constrangido, apostar quais bebidas pediriam, a separação das comidas, das comandas, das mãos. E então se aproximava. Sempre escolhiam a mesa mais distante, o andar superior, a mesa com duas cadeiras opostas de frente para a vidraça. A visão para o andar de baixo era uma boa fuga de quem não queria olhar nos olhos ao chegar no fim. Atendia os pedidos, a bebida levemente alcoólica nos casos de encorajar as declarações de amor engasgadas, a secura da água sem gás para quem pretende encerrar o assunto antes de esvaziar o copo. A porção de alimento para quem desejava pretextos para alongar a conversa, a negação daqueles que não buscavam mais que uma resposta definitiva antes de sair dali. E ele se acomodava atrás, olhos no andar inferior, ouvidos nos romances inacabados da mesa logo ao lado. Caneta na mão, fingindo que fazia contas, conseguia anotar trechos do enredo, entender quem havia sido traído, quem havia desistido, quem cansou da relação e quem nunca a deixou existir. As mesmas pessoas que voltavam lá diversas vezes para terminar diferentes relacionamentos, e todas as histórias se encaixavam como se bailassem perfeitamente harmônicas entre a fumaça da fritura e o hálito de cerveja.

Um dia, resolveu dar fim no bloco onde anotava os desfechos das histórias e poucos dos nomes que conseguia compreender entre sussurros, soluços e vozes embargadas. Sem coragem de se desfazer de todos aqueles anos de atenção às intimidades alheias, escreveu um livro. Alterou os nomes, cruzou as histórias que coexistiam nas consecutivas folhas de papel e ficou famoso. Finalmente deixou de ser "o garçom". Passou a ser reconhecido pelo nome e foi premiado pela realidade das suas histórias. Muitos daqueles que lá terminaram suas histórias, ao seu lado, se identificaram com seus dramas e (des)amores, mas nunca conseguiram perceber suas próprias vidas contadas pelo punho do homem que assinalava xis nas comandas. Quando insistiu ao chefe para permanecer servindo o segundo andar do estabelecimento, foi chamado de louco. Mal sabe ele que, enquanto houver vidraças para dissimular, amores por terminar e uma mesa para afastar, o garçom sempre terá histórias pra contar.

2 comentários:

  1. Muito bom,Gabrielle!Nao sabia desse teu talento...

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  2. Adorei, Gabi!!!! Sempre pensei que todos os garçons faziam exatamente isso! rsrsrs

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