terça-feira, 27 de maio de 2014

Terceira Pessoa

Rendeu-se à tentação de abrir novamente o cartão vermelho. Depois de dois anos, tinha a esperança que as duas frases numa grafia perfeita de caneta azul tivessem desaparecido do papel. Sentiu-se uma intrusa no meio de um passado que desconhecia, de amores que ignorava e de tanta história que veio antes dela. Há muitos anos não sentia uma sensação parecida com ciúmes. Sentiu-se ferida, um sentimento que não era nem raiva nem dor a deixava surda e embrulhava o estômago. A frustração pelo tanto que dizia e pelo pouco que tudo ecoava.
Passou a noite entre sonhos e imaginação, sem distinguir direito quando estava dormia ou delirava. A palavra "tesão" retumbava insistente na cabeça. Não havia um nome, um rosto, uma história. Havia duas frases numa letra invejável, reticências cheias de insinuações e tesão, havia uma letra e um ponto. Havia, explícito, um desejo ali. Havia tesão e não restava mais nada. A angústia do desconhecido voltou, para ficar. Conseguiu imaginá-lo desejado, amado, retribuído. Frustrou-se ainda mais, frustrou-se pelo que lhe faltava, pela informação incompleta. Não conseguia mais tocá-lo. A lacuna era imensa, uma fenda que se estendia sob os seus pés e deixava aberto um abismo com difuso, enevoado, incompreensível.
Jamais seria parte daquilo tudo, nenhuma daquelas letras falavam dela. Nenhuma daquelas frases jamais a pertenceu. Ali, seria sempre a terceira pessoa. Impossível, inexistente, confusa. E a terceira pessoa nem sempre é o indivíduo número três, às vezes é só aquela pronta para dissimular a primeira do singular.

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