quinta-feira, 22 de maio de 2014

Conto pra distrair: Pós-operatório

Enfileirou os cartões bancários. Anotou as senhas de cada um. Releu as antigas cartas de amor vagarosamente. Fechou as cortinas do quarto azul. Organizou todos os papeis. Deixou sobre a agenda um envelope, antes de bater a porta atrás de si. Tinha certeza que poderia morrer, que algo poderia dar errado. Seu pessimismo era imbatível e não sentia medo, apenas vontade de ter tudo organizado caso o que cogitava acontecesse. 
Quem o via organizando meticulosamente o quarto imaginava que se tratava de uma operação de alto risco, de um tumor maligno em estágio avançado. Ia retirar as amígdalas. Terminou o ritual de despedida, vestiu o traje hospitalar e esperou. Olhou longamente pela claridade da janela de vidros foscos e imaginou que poderia ser a última vez. Pensou que morreria satisfeito. Sem ter feito nada de grandioso, talvez com a trajetória um pouco abreviada, mas contente. A carta estava sobre a agenda e as recomendações claras de enviá-la no dia do seu enterro.
Declarava seu amor secreto, desde aquele primeiro encontro casual. Não sabia porque havia se apaixonado, não sabia porque jamais fora capaz de esquecer, mas sabia o motivo de nunca ter se declarado: estremecia ao cogitar a rejeição. Podia descrever seus dedos finos, as unhas lisas, uma leve marca no pescoço, detalhes captados ao acaso, quando a luz ofuscava a paisagem e só aquela visão era possível. Podia desenhar a expressão dos olhos ou falar demoradamente sobre as pernas que balançavam ou o hábito irritante de passar repetidas vezes as mãos no cabelo. Podia reproduzir mentalmente o timbre da sua voz, podia servir suas comidas preferidas, descrever a tatuagem ainda inacabada. 
Despertou da anestesia. Pensou que estava vivo, mas que o pior estava por vir. Poderia morrer pelas complicações, por uma infecção, via mil novas oportunidades de deixar o mundo. Pensou, pela primeira vez, que talvez desejasse morrer. Mais do que ter consciência da possibilidade, desejava a morte, o fim, o túmulo, a lápide, o frio e a leveza. Desejava mais não ser. Dizia ser pessimista, mas nesse momento ainda grogue do pós-operatório, concluiu que era apenas covarde. Tinha medo do que viria depois, medo de arriscar, de amar, de sofrer, de ser, de não ser. Preferia a inexistência às incertezas de estar vivo.
Sobreviveu à recuperação, contrariando suas piores expectativas. Chegou em casa e, apesar de adiar o máximo que conseguiu esse momento, teve que abrir a porta do quarto. Reencontrar as cortinas fechadas, a cama meticulosamente arrumada, os cartões enfileirados, os papeis organizados, as cartas de amor lidas e o envelope sobre a agenda. O envelope... Sentiu vergonha de si mesmo. Desejou, mais do que nunca, morrer. Talvez um ataque cardíaco, que não desse chances de salvação. Sentiu-se sufocar, mas sem parar de respirar. A dor fazia ter vontade de vomitar. Vontade de curvar-se e chorar. Chorar todos os medos, todo o amor que poderia ter sido, todas as histórias que nunca saíram da imaginação. Releu a carta, a declaração, se imaginou descendo a sete palmos enquanto a surpresa arrebatava o leitor de tamanha revelação.
Recobrou o fôlego.
Respirou.
Tomou uma decisão.
Fora tudo efeito dos remédios.
Estava delirando.
Não esperou que a carta terminasse de ter queimada, com medo de se atrasar para os compromissos meticulosamente agendados. Temia que o ônibus pudesse estragar no meio do caminho e arruinar a programação diária. Voltou a temer, religiosamente. Voltou à covardia. Voltou ao que não era, agora sem as amígdalas. Não teve medo de morrer, mas não tinha coragem para viver. E o fogo consumiu o segredo que nunca revelaria.

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