segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Conto pra distrair: ao meio

Jamais cogitou, sequer em seus devaneios mais remotos e despidos de todo senso objetivo que a impregnava, a possibilidade de vir a amar desesperadamente um segundo homem como amava o primeiro, sem que esses amores se entrecruzassem pelas artérias que inundavam de sangue e amor os diversos compartimentos de um mesmo coração.
Depois de assumir, não sem muito lutar contra essa certeza tão escandalosa, a segunda constatação foi natural e inevitável: o amor ao primeiro homem, por pura falta de uso prático, murchava lentamente como a gardênia branca esquecida sob o sol impiedoso. Atrofiava-se de tantos sonhos, afogava-se nas torrentes de sentenças não pronunciadas e pela contração muscular involuntária que persistia em esvaziar de todo amor o compartimento dificilmente preenchido.
Do espaço vago, nada se apossava. Restou um saguão despovoado, repetidamente encharcado e drenado pelo líquido vermelho que corria à revelia da vontade de mantê-lo eterno e intocável, como um salão de baile desativado onde ainda ecoam os passos da última valsa do último par.

Fez coro com Fermina Daza, acrescentando ao "pobre homem" um pobre de mim...

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Fora do eixo - ou voltando a ser Tereza

Escanteio a crescente pilha de projetos que me encaram enquanto retomo livros velhos de poesia. Absorta na segunda releitura do mesmo romance, perco as horas escrevendo mentalmente muitas páginas sobre a poesia que me desconcerta e o amor descrito que me maltrata. Encontro-me novamente sendo Tereza, que carrega um livro debaixo do braço como um código secreto para outra realidade possível, a mesma que bate à porta trazendo consigo todas as bagagens do mundo e um coração desfeito. Ainda a mesma Tereza que rabisca incessantemente poesias pelas pernas, pelos braços, pelo dorso nu, para finalmente convencer-te a findar o péssimo hábito de interromper pela metade as leituras - dos livros, dos corpos. Ainda que Tomás, ainda que a proximidade não signifique o pertencimento, ainda que adormecer no sofá não seja a porta de entrada para um novo - e teu - mundo. Ainda que estar lado a lado possa não representar absolutamente nada.
Continuo sendo Tereza: rabiscando-me, explorando-te. Desenho em mim toda poesia que os autores dedicaram, sem saber, ao cheiro da tua pele e ao hálito dos teus beijos. E quanto mais te procuro, mais me perco e me desencontro e desespero. Quanto mais te aprisiono, mais te esvais. E mais aumenta meu desconcerto pelas histórias nunca contadas, as memórias nunca ditas, os amores jamais compartilhados. Como meu Tomás, te espero resignadamente decidir voltar - mesmo que jamais tenhas partido.