quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ojos Verdes



Porque sempre que eu escrever qualquer coisa que precise descrever um par de olhos lindos, eles serão verdes. Nem azuis como o céu do meu pai, nem castanhos e cheios de brilho como os da minha filha. Eles serão verdes, de um verde escuro, manchado, como que corroído pelas histórias e pelo amor que passou por eles. Serão verdes como os do meu avô ou, que presunção, verdes como os meus olhos verdes. Serão verdes como olhos inesquecíveis com os quais todos esbarramos na vida...

Partida

Não sei. De repente o barulho da chuva me despertou a vontade de traduzir-nos em palavras.
O relógio se quebrou... Na dura realidade da nossa despedida, em que cada passo adiante te levava para mais longe do que há um instante era meu. Como conter tamanha emoção, a de te perder? Aprendi que é cuidando que se ama, e que se ama, cuidando. Ao saíres pela porta perdi mais do que um amor. Não sei bem o que era. Mas é como se perdesse mais do que podia realmente perder. No dia seguinte era difícil saber quem eu era. Era difícil limpar minha mente. A cada minuto o que vivi se tornava passado e as memórias eram cada vez mais pesadas. Hoje, porém, me esforço para lembrar-me do teu rosto. Rosto, esse, que foi tão adorado, tão idealizado. E eu amava, amava e amava. Não me satisfazia nunca. Eu sempre queria mais. Eu sabia que uma vida ao teu lado não me satisfaria nem por um momento sequer minha vontade de te amar. A verdade é que eu nunca me completaria com a sobra de algo que não encaixava bem. Por isso, gastava minhas horas me fundindo a ti, para ver se de algum jeito me davas o que eu precisava. O que eu achava que precisava. E o que era mesmo? O que era mesmo que eu precisava? Eu não sei. Nunca soube. E então me apegava nas migalhas que eu tinha. Minhas adoráveis migalhinhas. E eu amava, amava e amava.

terça-feira, 24 de junho de 2014

No Altar

Bebia vinho, contrariando a recomendação médica, que a proibia de beber durante o tratamento. Aproveitava as receitas trimestrais para encher os bolsos de antidepressivos e degustava os comprimidos durante todo o dia, como se fossem balinhas coloridas de açúcar ou pequenas doses de entusiasmo. Perdera as contas de quantos mastigara nas últimas horas, envolta nas brumas da bebida e na suave confusão dos tempos. 
Lembrou da única vez, em tantos anos, em que pôs os pés em uma igreja. Ele fê-la visitar uma das grandes, imponentes, com aquela luz dourada que emana dos seus castiçais de velas falsas. Fê-la encostar no marco de entrada, acariciar a madeira das portas e bancos, percorrer com os dedos cada detalhe trabalhado nas superfícies pintadas de dourado, falar baixinho, chegar perto e sussurrar no ouvido. Ele contava a história do lugar. Fez com que ficassem à distância de um par de lábios imóveis, impotentes, desencorajados. Logo ela, que odiava os simbolismos religiosos e toda ausência de referências que a provocavam, pisou em solo santo levada pelo argumento da beleza do lugar. Levada, na verdade, por ele. Por não conseguir resistir àquele par de olhos verdes e insistentes. Por tudo que levá-lo ao altar numa manhã ao acaso poderia significar.
Completamente entregue à memória, conseguiu sentir o odor do sebo das velas próximas ao altar, relembrar o roçar proposital dos braços, a caminhada lado a lado ao atravessar a igreja. Reviveu seu cheiro, mistura de perfume com a goma de mascar que nunca jogava fora. Entreviu, escondido nas imagens do altar, um deus irônico, no qual não acreditava, que ria ao vê-la completamente entregue naqueles degraus, diante de todas os símbolos e ídolos para quem não rezava e não pedia permissões. Desejou ajoelhar-se ali mesmo, não para pedir perdão aos santos e ao deus que voltara às suas ocupações, mas para pedir àquele homem que ficasse. Desejou pegar-lhe a mão e pedi-la para sempre, segundo a lei desse mesmo deus, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença.
Recobrou a consciência algum tempo depois. Se descobriu entre o cheiro persistente e o aperto de uma saudade desconhecida. Totalmente perdida, não soube dizer se realmente se ajoelhara diante do altar, não conseguiu saber se o deus estivera realmente lá. Só conseguia pensar que, tendo se ajoelhado e agora acordando sozinha em uma cama imensa, a resposta deve ter sido não. Mais um motivo para não crer naquele deus de altares dourados, nem naqueles olhos de perdição. E procurou mais pílulas para esquecer a dor que afligia o peito.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Das Sensações Cotidianas

Essa sensação diária parecida com leves cócegas que dão vontade de abrir as bochechas e mostrar os dentes deve ser, na verdade, a coisa mais próxima daquilo que chamam felicidade. Essa sensação vem acompanhada, em mim, do desejo de fechar os olhos por um só segundo. Ela acontece quando fico acordada até mais tarde e, ao deitar, encontro um par de pés quentinhos para me enroscar no rigor do inverno. Acontece quando consigo ver uma pequena criança aprendendo a vestir toda a roupa sozinha. Acontece quando saio e alguém desconhecido me abre um sorriso. Acontece quando ouço músicas que marcaram a vida, acontece quando ouço músicas que não significam nada. 
Esse transbordamento escapa pelo sorriso, contamina os dentes e abraça as orelhas. Chega com um café inesperado enquanto escrevo, chega com a expectativa de amanhã festejar com os amigos. Chega quando saio para procurar belas árvores para lembrar dela. O sorriso abre quando, um certo dia, percebo que alguém que já amei muito hoje ama outra pessoa. E é amado. E isso não acende nenhum desespero, nenhuma posse, nenhum rancor. Só gera o transbordar. Gera sorrisos. Gera mais amor. E isso tudo não pode ter outro nome que não seja felicidade...

terça-feira, 10 de junho de 2014

De uma tarde memorável (ou: para Ana - porque não consigo terminar "A Náusea")

Era uma tarde normal como quase todas as outras, nublada e um pouco mais fria que o esperado para os últimos suspiros de abril. Era uma tarde tão absolutamente ordinária que, por não trazer consigo nenhuma grande expectativa, me marcou de um jeito incrível. Precisava comprar um caderno, e não sei exatamente em que momento um banco no meio do calçadão, guardado por uma árvore que dançava ao intenso vento, me convidou para sentar. Era o banco em frente à papelaria. E ali, Ana, o dia mais ordinário dos dias começava a marcar suas impressões em mim.
Um moço pediu licença, sentou ao lado e abriu um livro. Espiei, era poesia. Enquanto sentada, esperando a chuva finalmente cair ou alguém que nunca chegaria, vasculhei a bolsa e encontrei "A Náusea". Eu já estava, como sempre, adiantada: olhei o relógio e ainda faltava quinze minutos para as cinco horas. Decidi permanecer ali, lendo, esperando sem saber bem pelo quê. Recomecei a leitura, ainda no início do livro, nas primeiras sensações de vertigem do personagem principal. De repente, três pessoas se instalaram ao lado da papelaria, duas meninas e um rapaz que puxaram uma escaleta da mochila, estenderam um pano e começaram a cantar e tocar.
Cantavam em espanhol, as músicas mais lindas que já ouvi. A voz da menina que interpretava as canções tinha um quê de choro, uma dorzinha escondida no fundo da melodia. Em espanhol, o idioma com que meu ouvido já se familiarizou por aqui e que me fez lembrar de casa mesmo estando longe. Um desavisado conhecido poderia achar que eu armara toda a beleza do canto e da cena. E, com a música tocando, o moço lendo, o vento ventando e a chuva finalmente aparecendo, foi impossível me concentrar na leitura. Minhas mãos suavam, minha perna tremia e meu coração parecia querer bater fora do peito. O som fino da escaleta era o único capaz de concorrer com o barulho ensurdecedor do meu próprio peito.
Senti ali, Ana, a tal náusea. Como uma vertigem que me puxava para baixo enquanto me deixava inerte. Era impossível me mexer, sair daquela cena, eu estava anestesiada. Era impossível me proteger dos pingos esparsos que insistiam em me encontrar embaixo da árvore. Já era impossível esquecer aquela tarde.
Não consegui comprar o caderno. Quando consegui me mexer, foi para finalmente entender que eu não tinha razões para esperar. Não havia porque estar ali. Ninguém jamais chegaria a tempo. Encontrei um abraço amigo, ainda nauseada, com o coração batendo na porta do ouvido, e assim o mundo voltou para o seu eixo. Mas não consigo abrir novamente o livro. A cada linha, me remeto novamente àquela tarde, tão linda, tão única, tão vertiginosa. Precisaremos de outros livros para debater.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Conto pra distrair: na pele

Tinha um fraco antigo por marcas. Ainda criança, demorava os dedos nos vincos formados na pele pela pressão das roupas. Despia-se e começava a carícia sobre os relevos. Os tornozelos, com a saída das meias, as tênues marcas ocasionadas pela pressão dos sapatos calçados o dia todo, a depressão levemente rosada que se prolongava depois de ter o pulso apertado por um elástico. Gostava da marca que permanecia no corpo. Descobriu gostar também das marcas nas outras pessoas. 
Depois percebeu também sua fragilidade diante de tatuagens. Não tinham relevo, na sua maioria, mas causavam nela o mesmo entusiasmo e deleite que os vincos profundos. Os desenhos, as cores, os significados e as histórias por trás de cada marca a faziam perder-se por horas nos contornos de uma pele conhecida. Desejava desvendar cada dono por trás de uma imagem perpetuada na pele, penetrar em cada entrelinha contida nas hesitações da mão do desenhista, dos sentimentos que permeavam cada volta, cada sombra, cada luz. Apaixonou-se por uma tatuagem, um dia, e por seu dono como consequência. Precisava estar perto daquele desenho desconhecido, daquela pele marcada. Sabia a descrição, porém jamais fora convidada a tatear seu corpo, a desvendar suas marcas. Tinha certeza que seria capaz de reconhecer aquela tatuagem nunca vista entre tantas outras desconhecidas, tantas as horas que ganhava perdendo seus dedos imaginários em cada contorno inexistente.
Notou, pouco tempo depois, que sua paixão expandia-se para além das marcas efêmeras da pressão sobre a pele e das marcas sem relevo dos desenhos escritos para sempre na pele. Percebeu admirar as cicatrizes. Passou a vasculhar as pernas, tão postas à prova durante a infância, buscando as suas marcas. Encontrou vestígios de si nos joelhos, nos tornozelos, nos dedos das mãos, no pescoço, nos lábios, nas pernas, no ventre. Encontrou uma tatuagem que seu próprio corpo havia se encarregado de fazer: uma marca de nascimento em formato de coração, no interior da perna. Descobriu-se outra, contada a partir das cicatrizes. Passou a apreciar as leves irregularidades das estrias que marcavam as pernas, a explorar sua história através das cicatrizes deixadas pelas histórias. 
Lembrou da tatuagem nunca vista e que, naquela mesma pele, havia uma cicatriz. Dividida em duas, rasgada por um bisturi, desejou refazer seus contornos recém fechados com a suavidade das pontas dos dedos. Desejou curar as feridas pelo toque, beijá-las até que seus extremos se tornassem conhecidos. 
Do amor pelas feridas e do desejo de acariciá-las até a cura, percebeu gostar também de rever as cicatrizes da alma. Passa os dias mensurando, revivendo e explorando toda e qualquer marca do coração. Sem objetivos, sem pretensões, sem nostalgia nem remorso. Explorando, como um carinho nas pernas marcadas, no pulso atado, como uma forma de aliviar a pressão das marcas jamais feitas. Descobrindo seus desenhos invisíveis, na impossibilidade de tocá-los ou beijá-los até a cura, desejou escrever. E hoje escreve, como quem acaricia um corpo, como quem desbrava uma tatuagem em seus contornos. Escreve para acalmar a alma.