terça-feira, 27 de maio de 2014

Terceira Pessoa

Rendeu-se à tentação de abrir novamente o cartão vermelho. Depois de dois anos, tinha a esperança que as duas frases numa grafia perfeita de caneta azul tivessem desaparecido do papel. Sentiu-se uma intrusa no meio de um passado que desconhecia, de amores que ignorava e de tanta história que veio antes dela. Há muitos anos não sentia uma sensação parecida com ciúmes. Sentiu-se ferida, um sentimento que não era nem raiva nem dor a deixava surda e embrulhava o estômago. A frustração pelo tanto que dizia e pelo pouco que tudo ecoava.
Passou a noite entre sonhos e imaginação, sem distinguir direito quando estava dormia ou delirava. A palavra "tesão" retumbava insistente na cabeça. Não havia um nome, um rosto, uma história. Havia duas frases numa letra invejável, reticências cheias de insinuações e tesão, havia uma letra e um ponto. Havia, explícito, um desejo ali. Havia tesão e não restava mais nada. A angústia do desconhecido voltou, para ficar. Conseguiu imaginá-lo desejado, amado, retribuído. Frustrou-se ainda mais, frustrou-se pelo que lhe faltava, pela informação incompleta. Não conseguia mais tocá-lo. A lacuna era imensa, uma fenda que se estendia sob os seus pés e deixava aberto um abismo com difuso, enevoado, incompreensível.
Jamais seria parte daquilo tudo, nenhuma daquelas letras falavam dela. Nenhuma daquelas frases jamais a pertenceu. Ali, seria sempre a terceira pessoa. Impossível, inexistente, confusa. E a terceira pessoa nem sempre é o indivíduo número três, às vezes é só aquela pronta para dissimular a primeira do singular.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Conto pra distrair: Pós-operatório

Enfileirou os cartões bancários. Anotou as senhas de cada um. Releu as antigas cartas de amor vagarosamente. Fechou as cortinas do quarto azul. Organizou todos os papeis. Deixou sobre a agenda um envelope, antes de bater a porta atrás de si. Tinha certeza que poderia morrer, que algo poderia dar errado. Seu pessimismo era imbatível e não sentia medo, apenas vontade de ter tudo organizado caso o que cogitava acontecesse. 
Quem o via organizando meticulosamente o quarto imaginava que se tratava de uma operação de alto risco, de um tumor maligno em estágio avançado. Ia retirar as amígdalas. Terminou o ritual de despedida, vestiu o traje hospitalar e esperou. Olhou longamente pela claridade da janela de vidros foscos e imaginou que poderia ser a última vez. Pensou que morreria satisfeito. Sem ter feito nada de grandioso, talvez com a trajetória um pouco abreviada, mas contente. A carta estava sobre a agenda e as recomendações claras de enviá-la no dia do seu enterro.
Declarava seu amor secreto, desde aquele primeiro encontro casual. Não sabia porque havia se apaixonado, não sabia porque jamais fora capaz de esquecer, mas sabia o motivo de nunca ter se declarado: estremecia ao cogitar a rejeição. Podia descrever seus dedos finos, as unhas lisas, uma leve marca no pescoço, detalhes captados ao acaso, quando a luz ofuscava a paisagem e só aquela visão era possível. Podia desenhar a expressão dos olhos ou falar demoradamente sobre as pernas que balançavam ou o hábito irritante de passar repetidas vezes as mãos no cabelo. Podia reproduzir mentalmente o timbre da sua voz, podia servir suas comidas preferidas, descrever a tatuagem ainda inacabada. 
Despertou da anestesia. Pensou que estava vivo, mas que o pior estava por vir. Poderia morrer pelas complicações, por uma infecção, via mil novas oportunidades de deixar o mundo. Pensou, pela primeira vez, que talvez desejasse morrer. Mais do que ter consciência da possibilidade, desejava a morte, o fim, o túmulo, a lápide, o frio e a leveza. Desejava mais não ser. Dizia ser pessimista, mas nesse momento ainda grogue do pós-operatório, concluiu que era apenas covarde. Tinha medo do que viria depois, medo de arriscar, de amar, de sofrer, de ser, de não ser. Preferia a inexistência às incertezas de estar vivo.
Sobreviveu à recuperação, contrariando suas piores expectativas. Chegou em casa e, apesar de adiar o máximo que conseguiu esse momento, teve que abrir a porta do quarto. Reencontrar as cortinas fechadas, a cama meticulosamente arrumada, os cartões enfileirados, os papeis organizados, as cartas de amor lidas e o envelope sobre a agenda. O envelope... Sentiu vergonha de si mesmo. Desejou, mais do que nunca, morrer. Talvez um ataque cardíaco, que não desse chances de salvação. Sentiu-se sufocar, mas sem parar de respirar. A dor fazia ter vontade de vomitar. Vontade de curvar-se e chorar. Chorar todos os medos, todo o amor que poderia ter sido, todas as histórias que nunca saíram da imaginação. Releu a carta, a declaração, se imaginou descendo a sete palmos enquanto a surpresa arrebatava o leitor de tamanha revelação.
Recobrou o fôlego.
Respirou.
Tomou uma decisão.
Fora tudo efeito dos remédios.
Estava delirando.
Não esperou que a carta terminasse de ter queimada, com medo de se atrasar para os compromissos meticulosamente agendados. Temia que o ônibus pudesse estragar no meio do caminho e arruinar a programação diária. Voltou a temer, religiosamente. Voltou à covardia. Voltou ao que não era, agora sem as amígdalas. Não teve medo de morrer, mas não tinha coragem para viver. E o fogo consumiu o segredo que nunca revelaria.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Conto para distrair: o garçom

Trabalhava há quinze anos no mesmo lugar, servindo as mesmas mesas e vendo a noite cair pelas janelas de uma esquina movimentada da cidade. Era garçom de um boteco importante, reconhecido pelos clientes fiéis e acostumado com a intensa correria de terça a domingo atrás do longo balcão de madeira. Casado há dez anos, conheceu a esposa no mesmo balcão escuro, pai de duas crianças e com uma insaciável curiosidade de viver outras experiências. Aprendeu a viver outras realidades enquanto servia bebidas para casais que escolhiam as mesas mais afastadas para ter sua conversa final. Aprendeu a diagnosticar, com folga, quais duplas ali entravam para dar fim aos seus relacionamentos, na segurança de uma mesa de distância do calor do corpo do outro. Com o tempo, começou a identificar também os rompimentos pelas bebidas, pela postura, pela comida não compartilhada. E fez do ouvido afinado uma arma para alimentar seu desejo de viver, enquanto via a vida passar pelo esverdear do semáforo onde ficava o boteco.

Na chegada de um casal, conseguia enxergar o desconcerto, o silêncio constrangido, apostar quais bebidas pediriam, a separação das comidas, das comandas, das mãos. E então se aproximava. Sempre escolhiam a mesa mais distante, o andar superior, a mesa com duas cadeiras opostas de frente para a vidraça. A visão para o andar de baixo era uma boa fuga de quem não queria olhar nos olhos ao chegar no fim. Atendia os pedidos, a bebida levemente alcoólica nos casos de encorajar as declarações de amor engasgadas, a secura da água sem gás para quem pretende encerrar o assunto antes de esvaziar o copo. A porção de alimento para quem desejava pretextos para alongar a conversa, a negação daqueles que não buscavam mais que uma resposta definitiva antes de sair dali. E ele se acomodava atrás, olhos no andar inferior, ouvidos nos romances inacabados da mesa logo ao lado. Caneta na mão, fingindo que fazia contas, conseguia anotar trechos do enredo, entender quem havia sido traído, quem havia desistido, quem cansou da relação e quem nunca a deixou existir. As mesmas pessoas que voltavam lá diversas vezes para terminar diferentes relacionamentos, e todas as histórias se encaixavam como se bailassem perfeitamente harmônicas entre a fumaça da fritura e o hálito de cerveja.

Um dia, resolveu dar fim no bloco onde anotava os desfechos das histórias e poucos dos nomes que conseguia compreender entre sussurros, soluços e vozes embargadas. Sem coragem de se desfazer de todos aqueles anos de atenção às intimidades alheias, escreveu um livro. Alterou os nomes, cruzou as histórias que coexistiam nas consecutivas folhas de papel e ficou famoso. Finalmente deixou de ser "o garçom". Passou a ser reconhecido pelo nome e foi premiado pela realidade das suas histórias. Muitos daqueles que lá terminaram suas histórias, ao seu lado, se identificaram com seus dramas e (des)amores, mas nunca conseguiram perceber suas próprias vidas contadas pelo punho do homem que assinalava xis nas comandas. Quando insistiu ao chefe para permanecer servindo o segundo andar do estabelecimento, foi chamado de louco. Mal sabe ele que, enquanto houver vidraças para dissimular, amores por terminar e uma mesa para afastar, o garçom sempre terá histórias pra contar.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Voltar (ou tanto tempo depois)

Mais uma segunda-feira.

Voltar e te encarar depois de tanto tempo, ainda confessor dos meus maiores segredos. Voltar e ler em ti os mesmos sentimentos, tão conhecidos e ao mesmo tempo tão novos ao serem relidos através da luz de um sol poente. Te reler sob as mesmas árvores, o mesmo banco. Te ouvir sendo meu eco, como se estivesse logo ali do outro lado da mesa. Ter que deitar para olhar por baixo as folhas embaladas pelo vento do fim da tarde que me sopram tudo o que já te disse e que jamais permaneceu em segredo. Ler em ti as tão velhas novas angústias diárias, o amor tão desfeito, refeito e malfeito. Te beber inteiro em um só gole, sem jamais me saciar nem me dar um porquê. Voltar pra ti, depois de tantas folhas jogadas fora, tantas canetas gastas, tantas músicas mal empregadas, tanto pouco sofrimento mal sofrido, depois de tantos outros amores. Te ver abrir os braços, poder quase sentir teu cheiro, e me aceitar de volta mesmo depois de tanto tempo posto fora. 
Tanto tempo imaginei o que te escreveria ao voltar e nenhuma palavra restou. O cursor permanece piscando, reticente, como há cinco anos. Falta tanto que ao escrever no diário só sobrou a frase "hoje fiz sopa". Falta tanto quanto a falta que me fazes. Falta tanto quanto ter que te escrever mensagens cifradas para dizer que tudo vai voltar ao seu lugar. Falta tanto quanto poder te escrever tudo o que senti nesses últimos dias e meses e ano. Desaprendi as despedidas, fico cada vez pior na arte de te dizer adeus. Meu texto não termina, e só me resta te dizer que hoje fiz sopa e que, mesmo que eu não volte mais, vai ficar tudo bem. Pelo menos é isso que me convenço diariamente.

É só mais uma segunda-feira, dentre tantas outras que virão...