quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Um vinho, uma vírgula, o ponto: o porvir

Um dia eu juro que ponho um ponto final nessa loucura que há tanto me atormenta, que me quebra em dois e me provoca e reinventa inteira. Prometo que jogo fora as recordações - que não são mais físicas, se reduzem ao ilimitado campo da memória -, que aprendo a escrever sem evocar cheiros e sem mencionar as palavras olhos e perfume. Um dia aprendo a bailar sozinha no ritmo da música, com a garrafa de vinho na mão, sem procurar no vazio do vento um outro corpo que jamais encontrei. Um dia eu porei pontos, todo dia sabendo que a hora está cada vez mais próxima. Enquanto isso, abuso das vírgulas que nos permeiam na dança das intenções implícitas, marco livros de poesias que falam de vagos olhos e línguas e passados e futuros. Enquanto isso, confundo as letras, me perco nas frases que nunca disse, encontro novos símbolos em cada reticência despretensiosa. Adio a despedida como quem tem consciência da sua incontestável proximidade.

Um dia eu juro que ponho fim nesse amor. E afogada na angústia de ter que me obrigar a esse momento, ponho a cada dia um pouco mais de fim em mim mesma.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Desfolhado

Despiu-se, lentamente, de todos os prazeres ocultos que ainda insistia em carregar. Foi desvencilhando de suas entranhas a escrita, as frases meticulosamente formadas para dar sentido às múltiplas vidas presentes, passadas e futuras, enterrando a sete palmos as sutilezas literárias que ainda persistiam nas pontas dos dedos. Com as chaves da casa, arranhou os álbuns que a acusavam de gostar de amar, mesmo que um amor sem objeto. Esvaziou os bolsos dos pequenos retalhos de papel com letras anotadas à menor lembrança bonita. Abandonou o diário vermelho, que também poderia suscitar desconfiança. Sentiu-se como uma frondosa árvore submetida a sucessivas e destruidoras podas. Estava na casca, sem veios, sem sulcos, sem folhas nem frutos. Marrom, imóvel, inanimada, como a árvore que mata seus próprios frutos na busca por manter-se viva, sobreviveu. Jamais florida, jamais esverdeada, jamais feliz.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Atrapado

Faltam dedos nas mãos para não se perder em tantos anos de saudades. Os desencontros já não se contabilizam em semanas nem meses, somam-se em décadas frias e confusas pela passagem do tempo. Faz tantos anos que o espaço destinado à tua falta transbordou, que tua presença se esparrama pelos cantos, pinga pelas frestas dos armários e deixa um rastro inconfundível pelo chão.
Mesmo assim, continuo com o ritual iniciado sabe-se lá há quanto tempo, tanto quanto meus dedos não sabem comportar. Ainda tempero meu corpo com a baunilha que roubo da cozinha, unto a pele no mesmo alecrim, banho cada vinco e tatuagem com os aromas que fizeste cultivar em mim. Pinto as unhas do mesmo céu estrelado, saboreio a mesma goma de sabor odioso e repetitivo.
No somar de anos e resultar em décadas, em pleno sonho me encontro repentinamente em um baile de gala. Descubro ser eu a anfitriã entre tantos rostos desconhecidos. Meu perfume é o mesmo, as minhas mãos ainda têm os mesmos dedos pequenos e finos, o mesmo anel, mas é visível a passagem do tempo. Entre tantas sombras e vultos sem significado algum, reencontro teu rosto tão conhecido e me surpreendo ao perceber a continuidade da nossa história, em outro tempo, em outro lugar, em mim.
Somos nós, a filha nascida, os outros filhos que reconheço sem ainda habitarem esse mundo, os mesmos gestos, o olhar que paralisa e faz gelar. Sou, em ti, a nossa história completa. Meu tom de voz, naturalmente agressivo, torna-se doce na tua presença; minha rouquidão vira música e me reconheço apenas pela tua familiaridade com meu corpo, que já há tanto não me faz habitar tão confortavelmente quanto antes; meus olhos refletem mais verdes ao cruzar com os teus, meus lábios te esperam, como se jamais tivessem te encontrado antes.
Envolta no nosso abraço interminável, o encontro de tantos descaminhos e tanto amor recolhido pelo caminho. Vestida pelos teus braços, complementando tua pele, somos somente nós e já não importam as décadas, os séculos, os milênios, os mundos. Já não importa as bagagens que trago, sou abraçada com todo meu passado, meu futuro e meus planos. Meus medos se perdem pelo caminho, já não importam as estradas paralelas que tivemos que trilhar até encontrar uma rota comum.

Meu sonho, teu, de encontrar-te ao abrir a desconhecida porta numa vida qualquer. 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Um dia, talvez, Alice

     Gostaria de ver teus olhos, Alice. Perco minutos preciosos nessas semanas corridas de estudos imaginando como serão teus cabelos, teu sorriso, tuas sombras. Descobrir tua figura enigmática que me perturba a cada poema em que leio teu nome, conhecer quem merece ser Alice diante de tantas belas palavras. Gostaria de conhecer teus sonhos, Alice. Saber tuas angústias, teus anseios, as linhas do teu rosto e as marcas das tuas mãos. Conhecer-te, imitar-te. Para chegar a ser Alice, merecedora de todos os sonhos e reverências do mundo; para dedicar a ti, Alice, o que me restaram de sonhos e angústias e desejos no mundo.