sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Desfolhado

Despiu-se, lentamente, de todos os prazeres ocultos que ainda insistia em carregar. Foi desvencilhando de suas entranhas a escrita, as frases meticulosamente formadas para dar sentido às múltiplas vidas presentes, passadas e futuras, enterrando a sete palmos as sutilezas literárias que ainda persistiam nas pontas dos dedos. Com as chaves da casa, arranhou os álbuns que a acusavam de gostar de amar, mesmo que um amor sem objeto. Esvaziou os bolsos dos pequenos retalhos de papel com letras anotadas à menor lembrança bonita. Abandonou o diário vermelho, que também poderia suscitar desconfiança. Sentiu-se como uma frondosa árvore submetida a sucessivas e destruidoras podas. Estava na casca, sem veios, sem sulcos, sem folhas nem frutos. Marrom, imóvel, inanimada, como a árvore que mata seus próprios frutos na busca por manter-se viva, sobreviveu. Jamais florida, jamais esverdeada, jamais feliz.

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