quarta-feira, 31 de maio de 2017

das memórias tiradas

O que é isso que se repete, que de tanto não se fala mas que não cessa de durar?
Que não nomeio, porque ninguém ainda nomeou, que é isso de uma promessa que une a todos,
que nos faz sermos mais parecidos, que está nas expressões dos sentimentos mais escondidos ou quem sabe, está ali para ser visto na imensa e não abrupta margem de nós?
O profundo das mudanças que assim com o tempo e como o tempo nos deixam as marcas na pele
E mudar não é estranho antes mesmo de mudar, porque mudamos desde que nascemos,
E as estórias que se contam mudam, essa memória que trazemos conosco, que a mim, se me tirassem, já estaria morta, muda
Nesse aprendizado da vida e de nós quase que paranoico, de escolha intuitiva, de um universo de flores que caem antes que possam ser flores de novo
Como o amor, que muda, que vaga por aí, solto, livre, voraz e que nos invade por vezes, e nos abandona por tantas outras
O que é disso que só os poetas conseguem falar? Deste capricho sorrateiro que brinca com as palavras, que brinca com as emoções, que brinca com o que fica ali e que nos conecta na identificação dos nãos ditos nos espaços que se alargam nas relações, porque as palavras não dizem e não se dizem as palavras
E isso varre o mundo e volta e nunca pára, mas nunca, nunca, nunca.

terça-feira, 30 de maio de 2017

De uma noite

Eu estava saindo do mercado quando um homem esbarra em mim correndo como se sua vida dependesse disso. Olhei a volta meio assustada, e não tenho pessoas para fazer um contato visual, continuei andando, estava quase na esquina de uma das grandes ruas de Porto Alegre. Eram 19:30 e estava muito escuro, já, pois o inverno já estava deixando a cidade um pouco mais sombria e bastante mais deserta. Abrirei um parênteses na estória aqui. Porto Alegre são muitas. Fico impressionada com as cidades que cabem dentro desta cidade. E o clima tem tudo a ver com isso. Quando começa a esquentar o povo bota bíquini para ir pular carnaval em pleno domingo de manha. Enquanto em julho, tu convidas algum amigo pra tomar uma cerveja no bar da esquina, e a pessoa tem sempre muitas tristezas guardadas e só quer ficar em casa vendo série. Nunca vi alguém dizendo que está deprimido para pular carnaval em dezembro. Me parece mesmo que a clima das pessoas anda junto com o clima da cidade que anda junto como clima do tempo. Enfim. Claramente isso não deve ser algo peculiar à cidade, mas já que é aqui que moro, é daqui que falo. Continuando a cena, dobrei a esquina e uma moto passou rapidamente pelo meu lado, uma baita moto, diga-se de passagem, uma custom, dessas poderosas em que o cara se sente a pica das galáxias sentado nela. Pois bem, pra completar o estereótipo de bad boy daquele que dirigia à moto, a cena perde um pouco o glamour, quando ele saca uma arma do casaco na minha frente e aponta para o rapaz, aquele, que esbarrou em mim correndo como se sua vida dependesse disso, pois não é que dependia mesmo? Eu paraliso. Uma mulher que está do outro lado da rua paralisa. Uma menina que está a alguns metros de mim e que caminhava na minha direção, põe a mão no peito. O cara da moto pára. O único a se mover nessa cena é o rapaz. Ele atravessa a rua e se ouve o motociclista hardcore mocinho ou bandido gritando: "Põe as mãos na cabeça! Põe as mãos na cabeça!". A mulher que estava do outro lado da rua faz contato visual comigo e grita: Ele tá armado!!!! Volta!!! A menina corre em minha direção. Eu me viro e volto por onde vim. A mulher me alcança e diz, "vamos ficar juntas!" A menina se junta a nós e nós começamos a fazer o caminho inverso dos dois homens. Nenhuma de nós entende muito bem o que aconteceu, cada uma conta da sua perspectiva a cena. "Que dia é hoje? Nasci de novo. Ele apontou a arma pro cara, mas parecia que era pra mim, porque o cara continuou correndo e eu que fique na frente dele, pronta pra receber um tiro no peito!". "A vida mesmo não vale nada, tu vê, sete e meia da noite e a gente podia ter morrido, porque esses dois tão resolvendo as suas coisas na rua." "Será que era policial?" "Será que era com droga?" Daí eu falo: "Acho que agora eles devem ter ido embora, eu realmente preciso ir pro outro lado". Quando entramos na rua que acontecera o episódio, vemos pessoas andando como se nada tivesse acontecido. Tudo absolutamente normal. "Pois, essas pessoas nunca vão ter a mesma percepção dessa rua que nós, agora". Fiquei pensando nesse cruzamento de histórias tão desconexas que se conectaram por um momento, por um breve momento, numa noite violenta da capital. Ali estavam pintadas as facetas da humanidade. A violência, o caos, o risco, o quase, o encontro, a ajuda, a vida. Após algumas quadras, cada uma seguiu seu rumo, contudo o rumo não seguiu o mesmo.

sábado, 27 de maio de 2017

do beijo

Sinto a vida Puir o que trago da infância
Sinto já saudades do que não poderei contemplar
Sinto saudades do que não entendo hoje, da confusão que amanhã não fará sentido perguntar mais que razão
Sinto saudades dessa dor gostosa de não saber
De ouvir Sobre bochechas rosadas do bebê doce que minha mãe conta que fui
De sentar de frente pro mar e sentir meu corpo ser tomado por uma estranha leveza
Sinto saudades da vida que não sentirei saudades mais
Do chão de terra molhada, do cheiro do café passado, do primeiro raio de sol entrar pela janela do quarto
Sinto saudades das perguntas repetidas, dos sofás, dos vinis mofados
Já sinto saudades deste corpo jovem, e dos risos desperdiçados nas madrugadas da noite urbana
Sinto saudades de ler pela primeira vez meu futuro autor preferido
Daquela poesia ainda não escrita.
De te beijar, infinitamente, de te beijar, já sinto saudades mesmo sem ter beijado.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Óculos escuros

Quero que saibas de pronto
Tocaste-me como poucos fizeram
Depois de te conhecer, não te quero mais desconhecido
Envolves-me com a tua arte, na tua voz rouca de insône,
De quem gosta de devorar a madrugada como eu
De quem gosta dos silenciosos beijos telepáticos dados em um outro sentir
Eu te acho mesmo tão bonito
Com teus olhos cansados e teus óculos escuros
Lembro-me do teu sorriso invadindo meus sentidos, pintado no teu rosto com tamanha sintonia
Teu interesse eu já percebia
Da tua energia de me observar de longe, pela tua câmera desfocada, eu percebia...
Surgido do que temos mais em comum, do nosso sensível caminhar por entre as coisas, por entre as ruas duras
Tu és um refúgio, um álibe, um brinde
Surgimos desta nova criação, do desenhar confissões românticas no papel, de sermos isso, de uma essência fluida, de leveza, de inexplicável encontro de sintonia plena,
 do se permitir permutar e flutuar por entre tudo.
Anota meu endereço, vem tomar café comigo, vem estar comigo.
Que não seja permitido, mas te quero nas minhas entranhas.
Porque te quero assim e não sei te querer de outro jeito.
Porque não te querer não me parece ser a vida, seria outra coisa, uma negação disso que tenho de mais bonito em mim e que tu o tens também...
Esse encantamento da não razão, do sonho, da fantasia.

Da beleza

O mar tem mesmo disso
Do ser leve, do ser forte,
Do saber que pode ser maior
Mas sem porque, não quer.
Assim como o mar pela manhã,
tu me chegaste de mansinho, tomando-me pelos pés, depois ventre, depois tudo
Como maré baixa, foi chegando, onda a onda,
Trazendo-me pra perto, curando-me dos males,
Fazendo do meu corpo morada, da minha pele salgada
Um caminho para o teu querer.
Assim como com o mar, esse meu encontro nunca se desfez
Não se esquece algo assim tão grandioso, belo como ele só pode ser.
Desejo entrar-te nas profundezas,
Mar adentro, onde não haja mais luz, nem perder,
Somente a própria beleza desse azul
Onde a minha morte seja a tua vida,
e que eu renasça dessa ferida
que é amar até morrer.

Espera

Meu corpo era universo em explosão
Todas as minhas células pareciam debater-se
Somente no ímpeto de uma incontrolável urgência por ter-te
Como átomos em choque, colidiam ao buscar-te
Criavam uma outra coisa,
Uma nova condição de vida, um novo estado de existir
Retiravam tudo do lugar
O mundo se tornava diante de mim algo incorruptível
Eu estava a fundir-me com o desconhecido ininterrupto do estranho
A cada gole que descia pelo que chamara de garganta,
Tudo em seu absoluto transformava-se em algo a ser redescoberto pelos meus sentidos aprimorados
A vida se esculpiu no momento em que eu a te entregara
E tu me dizias para ter cuidado, quase como pedido, como aviso, como denúncia
Nada atendia pelo mesmo nome, tudo havia se modificado, eu não via nada igual.
As cores, a cadeira, a gente, a rua, os prédios, o ar, a Lua, o chão
Era como se tudo ganhasse uma nota a mais antes faltante,
Uma nova linguagem decodificava o que eu nunca entendera,
Os sinais, os signos atravessavam-se por mim
Eu era a tua espera, toda, eu era meu desejo, todo.
Ser a tua dúvida e a tua ambição
Estava aconselhada somente pela minha angústia
Da possibilidade remota de não te ver entrar pela porta
Eu estava, estou, pronta.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Exílio

Tenho as cortinas da alma rasgadas
Guio-me por dentre as coisas todas e me parece que
Sempre acabo onde comecei no princípio
É falácia de que sou uma pessoa boa
Porque nem sei mesmo se o bom existe nesse mundo
E o que sou é um tanto fingimento.
Confesso que fiz um acordo com Deus quando tinha oito anos.
Fiz porque me contou um velho que conheci que ele havia feito.
Hoje já não me lembro o que Deus me prometeu.
Para uma criança podia ser mesmo qualquer coisa tola dessas que qualquer criança deseja.
Mas aprendi desde ali que a vida é trançada por trocas e apostas
E digo que nunca abandonei minhas derrotas,
Porque ainda sinto o gosto delas quando estou distraída.
E deve ser porque a cada derrota penso que ou Deus me traiu ou pedi pouco dele.
Há um submundo que habita em mim.
Por vezes à noite um ser oculto que não sei anjo ou o quê me descobre pelos lençóis
E me leva consigo para flutuar pelos seus pensamentos mais estranhos.
Ali me sinto abandonando tudo, um certo medo me toma, mas logo estou nos braços do que poucos conhecem...
A mais pura solidão.
Sinto-a no meu âmago como sei que poucos a sentem.
Como se fosse exílio.
Como se fosse a vida.