quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Letter

Eu sonhei uma vez que eu tinha te perdido. Eu não sei exatamente o que
aconteceu no sonho, não lembro mais dos detalhes, mas lembro de acordar e
te ver dormindo do meu lado.
Provavelmente
já havia passado do meio dia e fazia Sol, assim como hoje. Eu te ouvi
respirar, me acalmando. Era como se pudéssemos falar sem palavras. Eu me
pergunto, como e quando nós aprendemos isto. O nosso silêncio. Essa
linguagem secreta. Eu só sei que de alguma forma nos nossos silêncios,
juntos ou separados, eu te ouvi. E agora estou aqui com estas palavras,
estas palavras inúteis, quando tudo que eu queria era estar ao teu lado
de novo. 
Pra te fazer sentir seguro. Te ajudar a dormir. Te trazer de volta pra mim...

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Abstinência. É como se um grande vazio se instalasse dentro de você. Como se só importasse a dor da falta. É mais do que saudade. É o não ter desesperado em busca do que já não faz bem. É um vício, apenas.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Invisível Visibilidade

Foi um dia comum, ontem. Até que ela parou e, na saída do restaurante, acenou para uma criatura visivelmente invisível e longamente conhecida dos frequentadores do local. Heleninha parou, encarou o velho senhor maltrapilho que pedia moedas em um copo de requeijão e imediatamente se dirigiu a ele, abanando efusivamente. Ela queria me ensinar que nós construímos a invisibilidade daqueles que estão ao nosso lado. Como todos os outros, eu fingia - e me envergonho profundamente disso - que ele não estava ali. Fingia que não via a sua miséria, sua tristeza, sua dificuldade para falar e as mãos corroídas pelo tempo. Ignorei a sua decrepitude para não ter que encarar a miserável que a vida fez de mim. Ela parou, tirou o bico da boca e logo ofereceu ao senhor, que riu. Naquele momento, ele foi vestido da visibilidade de que o privamos todos os dias, enquanto não encaramos suas misérias para não esbarrar na nossa própria mesquinharia. Ela parou e conversou na sua língua ininteligível com o senhor invisível, que respondeu prontamente. Senti vergonha de mim e, confesso, não agi para mudar a minha atitude. Estava abismada com a lição que tinha acabado de aprender com ela, tão pequena, tão leve e tão certa. Ela que não consegue ver os mantos de invisibilidade a que condenamos os nossos semelhantes, ela que ainda enxerga a dor dos outros como se fosse sua, ela que me mostrou que ele é tão visível quanto a "mama", que ela chamou em seguida. Me aproximei. Ele era real, era um homem, tinha os olhos tristes de quem só observa e vê os outros passando. Ele tinha uma fala contida, quase muda, de quem se acostumou a não ser ouvido.
O senhor maltrapilho e a bebê com passos ainda desequilibrados me ensinaram que os invisíveis somos nós que fazemos; me despertaram de um profundo sono de insensibilidade. Me deram uma segunda chance.
Ela deu tchau. Os olhos dele não saíram mais da minha memória.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Mas aí..

Para onde foste, amor? Em quê se transformou a ausência das palavras doces? Em que encruzilhada da vida te perdeste ou mudaste de rumo? Acordei pensando que a saudade virara um hábito. Pensar em ti é quase inevitável, porém vivo em um mausoléu de promessas e declarações fora de contexto.
As imagens vão ficando escuras e nesse momento há um pedaço de mim que sofre. Tenho saudades desse amor que não sei onde está. Sinto saudades da promessa do fantástico que era te ver. Sinto falta dos telefonemas tardios. Da nossa troca de olhares perdidos. De alimentar nossa história com fantasia. 
Não vejo nada muito claramente.  Parece que um foco de luz atrapalha minha visão. Uso óculos escuros para poder enxergar melhor, mas às vezes, sabe como é, nada adianta. Aí eu voô longe, quem me olha logo vê que estou viajando pelo espaço que nos une ainda, no tempo em que tudo fazia sentido. 
Acho que no fundo, te preparaste bem. A tua queda não foi alta, construíste em volta um muro e me deixaste do lado de fora. Medo de quê, meu bem? Te forçaste a me esquecer. Assim, enjoaste das minha filosofias e dos meus vícios de linguagem. A vida agitada, te agitou também por dentro. E minha calma já não agradava mais. Mas aí me ligas... para dizer o quê mesmo? Mas aí me ligas, e eu me apaixono de novo. E aí... pouco importa. 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Letras miúdas

Terminava o filme que passava na tela
Letrinhas miúdas subiam ao som de uma música qualquer
Vi seu primeiro nome por entre os nomes desconhecidos e para mim, era mais como um letreiro
E pensei que um desconhecido em minha vida, um dia tu o serias também
Nossas cenas se repetiam no cinema interrompido do nosso roteiro.
E casualmente, seu nome em letrinhas miúdas, voltaria a ficar.

Para onde estávamos indo? Nos perdemos em alguma encruzilhada do nosso mapa mal traçado.
Não sabíamos a hora da partida e perdemos a largada,
Chegando em lugar nenhum, onde todos os amores mal resolvidos chegam.
Onde?
Não está mais.


domingo, 16 de setembro de 2012

Permanecido

Agradeço a inspiração. http://poetasdefimdesemana.blogspot.com.br.


Eu sentia falta dos abraços apertados que sufocavam meu medo de perdê-lo
Eu sentia falta do brilho dourado por meio da barba negra quando o sol iluminava a nós dois, ao mesmo tempo.
Sentia falta da sombra que nos unia no chão, por entre nossos passos, cruzando nossos caminhos, nos tornando intocáveis.
Sentia saudades daqueles risos demorados que iluminavam e rodopiavam na minha cabeça,
Como uma música entorpecente, me faziam esquecer o motivo da graça.
A falta dos risos e sorrisos me dilacerava, deixava um vazio, sonoro, visual, químico. Arrasava minha paisagem descolorida, constantemente fragilizada, arruinava minha razão.
Percebi, então, que via aqueles sorrisos muito mais do que quando os tinha. E percebi que eles nunca haviam de fato ido embora.  

Me falas de saudades


Viraste minha inspiração. Poesia advinda da dor.
Todo mundo precisa de uma fonte. Uns bebem água, eu bebo amor.   
            
Na nossa correnteza de palavras, quase promessas, era razão para o nosso viver. 
De que vale tanta certeza se o que nos faz seguir em frente é o não saber?


Me falas de saudades, me contas do teu dia-a-dia e reclamas da minha ausência, na mais pura ironia.
Me falas de saudades, do vazio na tua cama, no banco da moto, na tua nuca sem a minha boca.
Me falas dos resquícios de mim deixados por todos os lados
Nas gavetas das nossas despedidas. 

E eu te falo de sonhos. (Não dos que tenho contigo, meu orgulho me cala). 
Te falo de metas a serem saboreadas. Tento mostrar que o caminho é mais que a chegada.
Que os sonhos quando são grandes não demandam de tamanha pressa para serem alcançados.
Eles sobrevivem a longas distâncias, aguardam longas esperas em relógios quebrados. 
Esforço-me ao dizer que para andar, não se precisa de calçados.

Te digo que podemos ser donos do nosso tempo, apesar de sabermos que o tempo não pára.
Te peço em silêncio que me deixes por perto, que eu seja qualquer sorriso escondido na tua feição.
E que me deixes  viva nos batimentos ligeiros e descompassados do teu coração.

Te pergunto calada, o que sobraria se a saudade fosse sufocada?
Se minha foto ficasse amarelada no fundo da tua confusão?


Me falas de família, de trabalho, de bares.
Eu te pergunto por que tamanha solidão?



segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Nessa Segunda Azul


E quem diria que eu iria mesmo afundar sozinha? Pois é. A história acaba assim mesmo. Eu, agarrada no mastro, no meio de uma tempestade, afundando, sozinha. E eu penso, ainda bem que sei nadar.
Eu fui paciente e cautelosa, porém, decidi ceder. Eu baixei a guarda, tirei a armadura, entreguei meus pensamentos e meu afeto com todo cuidado e com toda a ousadia necessária. Cinco meses de bom dias, de confissões, de entrega, de uma amizade apaixonada. Cinco longos meses que passaram rápido demais. Sinto ainda o gosto da ansiedade na minha boca. O brilho nos meus olhos ao pensar em ti. Sinto minhas veias latejando ao pensar em te encontrar. Sinto aquela emoção exacerbada e estupidamente pura quando eu te vi pela primeira vez. Ou melhor, eu sentia. Sentia-me incrivelmente abençoada e grata, todos os dias, por ter alguém que eu queria dar todo o meu amor, do outro lado do mundo, pensando em mim. E depois, há algumas horas. E depois, na minha frente. Poder te tocar e te abraçar foi uma das melhores sensações da minha vida. Poder olhar nos teus olhos e dizer o quanto eu esperei por aquele momento, foi mágico. E todo o tempo de espera, que foi ótimo para mim, derreteu quando tu pegaste em minha mão com tamanha delicadeza e carinho. Era uma energia simplesmente fantástica. Eu podia sentir aquele amor em todas as células do meu corpo. E tu me perguntava, o quanto eu te amava. E eu nunca soube responder completamente. Porque eu te amaria de todas as formas e quantas vezes fosse necessário pra que tu acreditasse no meu amor. E eu sei que tu o sentia. Era palpável como calor. Era um fluido transparente que passava das minhas mãos para o teu peito nas tantas vezes que ficamos em silêncio, deitados um ao lado do outro, de olhos fechados. Eu posso afirmar que vivi um sonho de um sonho. E escrever sobre isso, torna o nosso sonho real e imutável. Sabe, minha memória me prega peças. É a primeira vez que me lembro da gente. Fiz um esforço muito grande para apagar as coisas boas que vivemos, para não doer. E funcionou, por incrível que pareça. Mas decidi deixar no papel algumas lembranças porque elas valem a pena por si só. São bonitas demais para ficarem esquecidas. A nossa história daria um livro, na minha opinião. Estou aqui de coração dilacerado escrevendo trechos. Mas há muito mais. Uma infinidade de detalhes belíssimos escondidos nos minutos compartilhados contigo. A nossa poesia de mãos dadas. Como a gente costumava dizer, “é muito amor”. Lembro daquela maneira única que tu me beijavas: era um beijo com carinho e com um sentimento enorme; um beijo com saudades prévias e tardias. Um beijo de angústia, de posse, de medo. Um beijo de te quero para sempre. Eu sentia isso. ISSO não foi fantasia. Porém, o meu beijo era de pura gratidão e esperança de que a tua dor passasse. Que de alguma forma eu pudesse te curar com a minha segurança e a minha generosidade. Eu queria arrancar as tuas dúvidas, queria tirar o teu medo, queria cicatrizar as tuas feridas. Mas não dependia de mim. E esse foi o meu erro. Eu acreditei demais em ti, por mim e por ti, de uma só vez. E superestimei meu talento em ajudar as pessoas. De alguma maneira devo ter te ajudado, talvez os frutos não tenham ficado maduros ainda para serem colhidos.  Talvez.
Estou anestesiada pela ausência das falas. Pelo celular desligado. Pelo meu silêncio, pelo nosso silêncio. Estou atada nessa história e às vezes, penso, foi real? Terá sido algo inventado de forma tão bela, sem falhas? Será que me dediquei a apagar as imperfeições? Será que não vi as cicatrizes tão aparentes? Será que eu não quis ver? Será que minhas expectativas tornaram as coisas maravilhosamente especiais?
Hoje está tudo diferente. Peguei minha parte de volta. Meu coração está inteiro. Meio colado, mas inteiro novamente. Não acho justo deixar nenhuma parte de mim por aí. Não acho justo comigo, que fique claro. E nessa segunda azul, já não imagino mais segundas ao teu lado. Estou presa ao presente com pessoas que querem estar nele. Não preciso de restos, de talvez, de possivelmentes.
Deixei-me levar pelas palavras fáceis, pelos sonhos da tua cabeça inconstante. E eu gostei da idéia. Mas não fui sincera comigo. Eu gosto muito do presente. Me teletransportei pra um futuro de suposições e esqueci de  olhar para o que estava a minha volta. Nosso presente era muito importante para mim. Foi um dos melhores presentes que eu já vivi. Mas me acostumei com a falta dos bom dias. Com a falta das ligações. Me adaptei a minha nova vida sem ti. Acho que um dia ainda vou acordar chorando, perguntando, por quê? Ou em alguma cena, em algum filme que tenha muitas manhãs e muitos parques verdes, eu fique reflexiva e nostálgica. Ainda não aconteceu. Não sei se é porque o único caminho para mim agora é o de estar firme ou se é porque ainda não te coloquei no meu passado, por mais que no presente, tu não estejas mais. Deveria existir um tempo entre esses dois tempos. Um pretérito-presente ou presente-quase-pretérito. E como conjugar os verbos nesse tempo? Eu te amei? Eu te amo? Ah! Eu teria te amado para sempre.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Não Estou de Dieta

Num mundo pautado pela beleza, é anormal ouvir "não estou de dieta" de alguma mulher com mais de vinte anos - e muitas vezes, também anormal ouvir de adolescentes de quinze já tão preocupadas com o número do manequim. Num mundo onde vestir 40 é crime capital, me afogo em chocolate, bolo e culpa. Sou mulher e facilmente enganada pela mídia que me diz a todo tempo que doce engorda, refrigerante dá celulite, fritura mata. O que eles escondem é que a preocupação exagerada com o corpo começa cedo e mata muito mais do que fritura, refrigerante e doce.
Me recuso a fazer dieta e explico o porquê. Acho que dieta não mata só calorias, mata a espontaneidade, mata o sorriso, frustra um desejo que aparece no meio da tarde. Dieta, pra mim, é tortura. Mesmo depois de uma gravidez, voltei facilmente ao meu peso, mas meu manequim jamais voltou a ser o mesmo. Resolvi o problema sem dieta, sem correr feito louca, sem comer mais alface do que estou habituada: comprei calças maiores. Claro que tive crises, falei que estou gorda, briguei com meu próprio corpo e, lógico, não adiantou nada. Mas, como posso e devo, sou bem resolvida com meu novo corpo e meu novo peso.
É ilógico desejar que mulheres de trinta tenham os mesmos corpos que aos quatorze anos, é idiota incentivar a corrida contra seus próprios corpos, é absurdo legitimar métodos de tortura pra tentar tornar isso possível.  
Fazer dieta é rejeitar a si mesma, o corpo, as formas, a beleza. Claro que ouço muito me dizerem que "se eu posso melhorar, por que não?" e aí que me pergunto, por que ser magra é melhor que ser gordinha? Nota: ser gordinha hoje em dia é estar com o peso adequado, vestindo o tão temido 40, comendo e vivendo sem culpas, sem grilos, sem ricota (argh!).
Respeito quem faz dieta, mas não me sugiram métodos mirabolantes para enxugar gordura. Não me sugiram fórmulas mágicas para enxugar a mim mesma. Não me peçam para rejeitar as maravilhosas receitas do meu marido, regadas a batatas (carboidratos, meu Deus!) e muito azeite. Não me digam para cortar a comida, pois sem prazer na comida e no amor, não há sentido nenhum em viver.

Brigar com o peso, para mim, é como brigar com as estrias que ficaram da gestação. São marquinhas que o tempo e a experiência de gerar alguém me deixaram. E, mesmo que fossem só de brigadeiro, seriam as marquinhas da felicidade de não me privar das minhas vontades.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A Fonte Secou

É difícil admitir algo tão óbvio e que há tanto tempo já é tão perceptível. A fonte secou.
Não sei em que ponto isso se desenrolou, mas as palavras já não fluem mais, as linhas não se conectam, a pontuação foge e a sensibilidade desapareceu. As mesmas músicas que faziam verter rios de palavras já não surtem mais efeito algum; o céu não me diz mais nada; os dias estão todos iguais.
Há algum tempo, não sei quando, não sei onde, parei de tentar recontar as mesmas velhas e gastas histórias, não encontrei mais aquela velha ânsia de amar e de compreender.
Me sinto ainda mais incompetente ao declarar publicamente: a fonte secou.

Se ao menos eu voltasse a enxergar o mundo como ele sempre me rodeou, se ao menos eu reaprendesse a tatear as palavras, as palavras... Se ao menos eu voltasse a desbravar a imaginação.

domingo, 12 de agosto de 2012

Pai



Meu pai não é herói. Aos meus olhos de criança era um gigante que, ao me tomar nos braços, emprestava a incrível capacidade de voar. Meu pai era um super-herói doméstico, na vista dos meus pequenos olhos de criança. Lavava a roupa, organizava a casa, fazia mágica e a comida aparecia pronta, outra mágica e, com um pequeno aparelho branco, usava seu poder para transformar as rugas das camisetas da escola em seda pura, lisinha, branquinha, brilhante. Meu pai me acordava com o perfume de mingau e com o rádio baixinho para ouvir as notícias. Meu pai era um super-herói sentimental. Chorava por qualquer coisa, a qualquer momento, sem qualquer pudor. Para mim, a frase "homem não chora" certamente não se aplicava aos super-heróis, assim como meu pai. Talvez as lágrimas que caíssem daquele par de olhos azuis também fizessem parte de algum dos seus poderes.

O tempo passou e o meu corpo cresceu em volta dos meus olhos de criança. Minha visão se alterou e, com ela, as coisas ao redor também mudaram. Pensando hoje, talvez seja por isso que precisei de óculos, para aprender a enxergar o mundo sem as mágicas e os poderes do meu pai.

Descobri que meu pai era humano, sempre havia sido humano, para sempre seria humano. Descobri que meu pai possuía defeitos, que os braços dele não seriam capazes de sustentar o meu peso pela vida toda, que os seus olhos azuis choravam por motivos que talvez eu nunca vá entender. Um dia descobri que ele poderia ter outra vida, outro rumo, caminhar outros passos e tive certeza de que meu pai era realmente humano. Conheci suas falhas, seus defeitos e passei a me apegar ainda mais às qualidades, determinada a nunca esquecer do gigante que me fazia voar quando era criança.

Meu pai me deu muito mais do que características genéticas. Meu pai me deu muito amor, muito carinho e muitas decepções. Me ensinou a ser tolerante e a aprender a respeitar, dentro dos nossos limites, as características e as escolhas que cada um faz na sua vida. Me ensinou a ter paciência e a fazer chocolate quente. Me ensinou que os seres humanos são mais heróis do que os que transformam camisetas amassadas em trajes de gala, que é possível conviver com defeitos, respeitá-los e até amá-los. Meu pai me ensinou a tocar a vida sozinha. Me ensinou que eu não posso esperar ter alguém sempre ao meu lado, que muitas vezes a vida exigirá só de mim e não haverá ninguém para quem recorrer. Meu pai me mostrou que a vida é uma só e que não há espaço para arrependimentos e sonhos frustrados. Meu pai me mostrou tudo de si e por isso sou grata. Sei que ele não terá vergonha de pedir desculpas e reconhecer seus erros quando essa hora chegar e sei que algum dia ele ainda recuperará o tempo perdido e descobrirá que eu cresci em volta dos meus olhos. Sei que um dia ele verá na minha filha a oportunidade de fazer tudo de novo para ela e, principalmente, para nós. Sei que reconstruiremos o que ficou perdido.

Tenho certeza de que o tempo é sábio. O mesmo tempo que nos faz perder a visão dos nossos super-heróis e ganhar a visão de pais, companheiros, amigos, humanos e falhos, falhos como nós. O mesmo tempo que me faz feliz por não ter a pressão nem a culpa de pais perfeitos por trás de mim. Meu pai é admirável por muitas coisas, mas a maior delas eu sei contar aqui: ninguém jamais vai conseguir me fazer voar outra vez.

Feliz dia dos pais, meu pai.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Retomada

Não sabia onde estava com a cabeça. Pensou que o mundo andasse numa linha reta, que simplesmente jogaria algumas dúvidas inquietas para trás e elas nunca voltariam, batendo na sua cara com a força do vento de quem deu a volta ao mundo com o impulso de um desleixo. Pois o mundo é bem redondo e as nossas inquietações sempre voltam. Os fantasmas sempre descobrem um novo lugar para se esconder, ou melhor, para serem achados. Precisamos do dedo maldoso das dúvidas que nos tiram da calmaria, que nos cutucam em sonhos (nem tão) inocentes, que retorcem no nosso nariz as mais cruéis suposições sobre um outro passado - e um outro futuro.

Não imaginava que, num belo dia de sol, o passado beijaria o seu rosto com aquele ar irônico de quem teve todo o tempo do mundo para se mostrar na melhor oportunidade. Perguntas ficaram pairando pelo ar, de qualquer jeito precisaria tirar tudo a limpo. De qualquer forma, recontar as mesmas histórias pela milésima vez, juntar os fragmentos que a construíram. E isso é o que ela estava disposta a fazer.

Um dia, ele bateu a porta na sua cara sem dizer porquê. E assim, sem saber, convocou todos os adormecidos demônios a invadirem sua casa, sua vida, revirar seus armários e atirar suas roupas pelo chão. Sem que ele quisesse, convidou-a para perambular eternamente em sua sala, dançar através dos móveis. Ele sente o seu perfume de flores pela casa e não lembra de quem é, mas sabe que esse mesmo aroma o impede de modificar a disposição do divã. Mas ele vai lembrar.

sábado, 9 de junho de 2012

Igual a Qualquer Um


Melhor que eu não te conte novidades,
Nem diga nada muito diferente,
Nem faça teorias sobre a gente,
Nem fale dessa angústia que me invade.
Melhor juntar palavras já testadas:
Amor, Saudade, Beijo, Despedida.
Um saco de figuras repetidas,
Tão gastas que já não te digam nada.
Pois só o que for extremamente fácil,
banal como as canções do rádio,
Replay de algum clichê, lugar-comum
E nunca retratar a nossa vida,
Vai te deixar feliz e comovida
E te fazer igual a qualquer um.
(Leoni)

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O que faz um sentimento não morrer? E o que faz ele morrer? Ou se transformar em outro sentimento? Às vezes mais fraco, as vezes mais forte? O que muda a ponto de mudar tanto? Todos os dias são recomeços para mim. Uma página em branco, uma página familiar, porém em branco. É assim que me sinto a cada novo amanhecer. Não sou a mesma que era no último. E o que pode me conquistar, me magoar, me surpreender, por vezes muda também. Ou já não é suficiente.
Quanto mais segura me sinto, mais reconheço do que preciso. E confesso precisar de coisas diferentes a cada dia que nasce. Mas a busca é minha, as respostas são minhas também. Ninguém pode me dar o que eu não tenho. Ninguem pode plantar algo que não esteja pronto para ser colhido daqui a um tempo. E eu só enxergo o que reconheço. Minhas vistas muitas vezes limitadas não veêm a forma do que se apresenta diante de mim. Mas não há dor perdida. Não há magoa irrecuperável. A vida sempre escolhe certo de alguma maneira. Essa energia maravilhosa que nos move, nos empurra para frente. Estamos interligados de maneira que nem imaginamos. Nunca estamos sozinhos. E isso me faz sentir algo próximo de certeza. A certeza de que no fim, tudo dá certo.

sábado, 26 de maio de 2012

Continuar

Eu preciso de férias. Férias desse sentimento que me consome, me intriga e me confunde. Eu me perco tanto e tantas vezes no mesmo caminho. Dou meia-voltas, voltas inteiras e paro, também, em qualquer barreira. Fico parado por tempo demais. E sofro. Sofro muito. Esse desejo agudo, sim, é um desejo agudo, de querer que as coisas fiquem imóveis, paradas, do que jeito que estavam. Por que pessoas não são feitas de cera? E momentos não são fotografias? Por que tem que ter tanto desvio e tanta gente passando por esse caminho. Aí que eu fico perdido pra burro, sem saber pra onde ir. Sinto vontade de voltar, mas para onde? Para o quê? A solidão me consola, mas me cansa. Bebe até a última gota da minha esperança. Também estou farto dela. Estou farto de tudo. Farto e desolado. Desolação. Quando me ergo, pesa mais. Quando tento olhar para cima, algo ofusca minha visão. Sinto-me em um túnel longo e escuro. E por alguma razão, ouço alguém falar de longe, baixinho, quase um susurro: continue.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Único caminho

Espere por mim, meu bem.
Venha de mansinho. Chegue, assim, devagarinho. Sem fazer muito barulho que eu não gosto de confusão.
Não me pegue pela mão. Não ande na minha frente. Não finja estar contente.
Não procure gostar do que leio, do que escrevo ou até mesmo do que falo.
Seja crítico, meu amor, seja sincero.
Não fale comigo quando não quiser falar, não me diga que me adora por conveniência.
Não desista de mim, meu bem. Apesar de querer, todos os dias, um pouquinho, desistir.
Não deixe de querer desistir porque é a tua vontade maior que fiques que te faz ficar.
Não deixe de me dizer bom dia e nem agradecer pela minha preocupação.
Não me deixe completamente nua. Eu não sei ser nua, nem quando nasci.
Não me deixe esperando... numa conversa, do outro lado da linha, no meio de uma multidão.
Não se irrite com minha ingenuidade, nem com a minha preguiça demanhã.
Não se queixe da minha mania de viajar por galáxias distantes em busca de mim mesma. Às vezes eu não te levarei comigo.
Não grite comigo, mesmo quando quiser, mesmo quando quiser muito.
Não me trate mal, se não quiser me tratar bem, suma por alguns dias.
Não banque o interessado, não desminta mentiras minhas, finja que acredita nelas. Um dia eu conto a verdade.
Não faça piadas desnecessárias, não ria dos outros na minha frente, não condene minha família desestruturada.
Não mude de humor muito seguido, não durma de mau humor comigo.
Não me deixe maluca, ou deixe, mas só quando for a última opção para me chamar a atenção. Eu sei que posso ser distraída.
Não me exiba para seus amigos, não me esconda deles também.
Não me ofereça um cigarro, jamais.
Me compre bebidas às vezes, whisky, de preferência.
Não me leve para o pagode, para o sertanejo, para o samba reggae rock, "whatever".
Deixe tudo claro, tudo certo, tudo limpo para facilitar as coisas para a minha imaginação e para a minha insegurança.
Não tente me convencer, não tente me persuadir, não tente usar palavras complicadas para me confundir.
Sim, não me confunda. Jamais.
Me faça um café forte de madrugada quando eu estiver escrevendo coisas que nunca lerás.
Me olhe enquanto eu estiver ocupada, sem que eu perceba.
Me surpreenda todos os dias.
Me faça voltar para tua cama por desejar algo a mais. Me faça lutar por algo a mais em nós.
Entre no mar comigo, entre fundo, onde há tubarões. Se arrisque.
Reserve um jantar para nós dois, reserve um olhar especial para mim e um sorriso, "it would be nice too".
Seja intenso e não reclame da pimenta que eu coloco na comida que eu fiz, é claro que eu não gosto de cozinhar e é melhor se acostumar com isso.
Não reclame demais de mim, não me canse. Eu me canso fácil de reprovações. Eu não sei falhar bem.
Não aponte o dedo para mim. Não diga "eu te avisei".
Não reclame do meu salto. Do meu batom. Da minha roupa e do meu cabelo. Ele não é liso, sorry.
Não desconte os problemas em mim, não aja como se não soubesse o que está acontecendo.
Não seja relapso, por favor! Nada pior que alguém que não se importa e finge que é sonso.
Não me mande flores. Não escreva cartões comuns. Não diga que está com saudades sempre.
Não me deixe mal acostumada. Faça-me duvidar da realidade e depois me mostre como estava enganada.
Conte-me uma história antiga, conte-me do seu dia, conte-me algum sonho.
Me inclua no seu futuro. Me escolha para estar nele.
Não me descarte facilmente. Valorize meu jeito diferente.
Não reclame que sou muito calma, que sou muito lenta, que sou devagar. Eu gosto de andar devagar.
Não me dê relógios. Nem perfumes. Nem bolsas.
Não exija demais de mim. Não me iluda. Não me teste.
Não reclame que eu gosto de comer a sobremesa antes ou que eu bebo muito. Eu não vou beber cerveja, também.
Não me chame de louca. Nem quando eu parecer louca.
Não se esconda de mim, não me deixe no escuro. Não pare no meio do caminho.
Tenha coragem para enfrentar nossos problemas. Não deixe que os empecilhos da vida tirem o que temos de melhor.
Não se acostume comigo, mas me conheça melhor que ninguém.
Tente me entender. Tente mesmo. Eu nunca te faria mal.
Eu vou escutar música alto, vou deixar tudo uma bagunça, vou estragar seu adoçante por apertar demais a embalagem.
Vou esquecer de alguma data, vou esquecer de algum prazo, de algum evento. Vou esquecer.
Vou cantar muito, o tempo inteiro. Compre fones.
Vou reparar em coisas esquisitas, e perguntar coisas esquisitas. Vou ter atitudes esquisitas. Não me julgue.
Não esteja comigo querendo estar em outro lugar. Não converse comigo enquanto coma, no telefone.
Não me desaponte freqüentemente. Não me suje de falsas esperanças. Não me diga coisas óbvias.
Não exija minha simpatia com quem não gosto. Não exija que eu fale quando não quero. Não insista. Nunca insista.
Não me encurrale. Não me abandone também.
Eu já pedi para ficares? Pois, fique.
Fique a vontade, fique o tempo que quiser, fique sem razão, ou por umas mil.
Fique não por ser o único caminho. Mas por, na verdade, ser.

sábado, 5 de maio de 2012

Ventos fortes

São ventos que passam e nos arrastam. E nos levam para longe onde não temos força para acreditar. São ventos fortes esses. Possivelmente muito fortes. Podem arrancar nossos pés do chão. Mesmo com os olhos fechados eu posso sentir as nuvens no meu rosto, e dentro da minha mente, está você. Meu coração sente a pressão quando eu volto para a Terra. Somos tão humanos. Maravilhoso, se às vezes, não doesse tanto. Se às vezes os ventos não nos levassem para longe de nós mesmos. Sinto saudades de tempos de calmaria. São tempos difíceis esses. São tempos de coisas não óbvias. São ventos incertos. Nada de meia-estação. Sinto o calor do Sol queimar, sinto o frio rasgar. Sinto tudo demais. E quando não sinto, é como se eu tivesse perdido algo pelo caminho. Talvez eu dormi tempo demais. Talvez minha calmaria tenha sido alienação. Talvez viver realmente seja um vento forte. Mas eu posso ser mais forte ainda.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Carta para Gabi

Gabi, estava aqui pensando em jardins. Acho que somente tu vai entender a metáfora, pois ela está atrelada as nossas memórias. Aprendi com meus jardins que a maioria deles são passageiros, por inúmeros motivos. As vezes não suportam o frio, os temporais, o calor excessivo. As vezes o terreno não foi bem preparado, ou eu não comprei o adubo correto para que florecesse. A verdade é que a vida nos meus jardins precisavam de mais cuidados, ou dos cuidados corretos. Meus jardins não deram certo. E que ficou no lugar, foi um terreno devastado, com uma cerca alta para ninguém ousar pertubar a paz ou a solidão que se intalara ali. Muitos jardins... Mas foi contigo que vi que posso ter um jardim florido, duradouro, regado de felicidade. Vi que era possível me envolver, compreender, respeitar, perdoar, recomeçar. Vi que as estações moldaram o jardim, fizeram-no mais forte, mais bonito. Visito esse maravilhoso jardim todos os dias, para cuidá-lo, admirá-lo. Porque ele é único para mim. E quando nada parece dar certo, me deito por entre suas flores, e não há no mundo sensação igual a esta.

Obrigada.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O azul pintado de claro entrava pela janela do meu quarto, me fazendo parar por um segundo e me assustar com a velocidade com que o tempo havia passado por entre meu café gelado, minhas mãos trêmulas e meus olhos cansados. Eu podia sentir meu esforço se esvaindo por debaixo da porta com a fumaça que meu incenso queimava. Meu esforço tão interligado com meu desespero na tentativa de fazer com que ela acreditasse em nós. E como se planta uma ideia na mente de alguém? Como seria possível?

A imagem de um futuro sem a presença dela nos meus dias matava o que havia de mais bonito em mim: esperança. É tão doloroso rasgar os sonhos, romper os elos, esconder o sentimento numa caixa para ser esquecido lá. Como é difícil ir em direção contrária a do coração. Parecia inútil. Já estava desistindo quando talvez o que ela quisesse fosse a demonstração do meu afeto, do quanto eu me importava, do quanto a queria. Foi no momento que disse adeus, então, meu bem que ela mais uma vez se rendeu a mim. Exatamente como da primeira vez em que assustada me olhou, inundada por aquele sentimento de entusiasmo e medo.

Nossas histórias são fragmentadas, nossos dias são cortados em mil pedaços, nossos finais de semana programados. Mas eu queria acreditar. Eu precisava acreditar por mim, por nós dois. Não podia demonstrar cansaço, desânimo e muito menos apatia. Mesmo quando me sentia fraco, era necessário mostrar a ela que era possível. Tinha medo que ao primeiro hesitar ela fugisse de mim mais uma vez. Mas era cansativo ser mais forte do que eu mesmo poderia ser. Era renovador, mas cansativo. Eu me inventava todos os dias para ela. Fazia-me o mais interessante e paciente possível, nada poderia atrapalhar nosso amor. Pudera...

E agora eu estava aqui, de joelhos para ela novamente. Esquecendo tudo que havia feito, para poder fazer mais. Somente para vê-la sorrir, para vê-la caminhar ao meu lado pelo canto dos meus olhos e me sentir bem. Mas me sentir bem mesmo, como se a vulnerabilidade da vida não existisse, como se aquele momento fosse eterno. E para mim, na realidade, era. Eu recomeçaria quantas vezes fosse preciso, eu partiria da onde ela estivesse, eu iria continuar o que havíamos começado infinitamente.

sábado, 7 de abril de 2012

Na estrada

O vento batia forte no meu rosto e os meus cabelos dançavam com a melodia do ar. Podia sentir meu coração descompassado, alucinado de emoção por estar com ele, tão perto dele. A estrada debaixo daquela moto me dava uma enorme sensação de liberdade. Tinha o conhecido há algumas semanas somente, porém nada me fazia acreditar que o tempo não media tantas coisas assim. Um novo mundo a ser descoberto tinha se aberto diante de mim. E eu pulei da ponte diretamente para essa correnteza de afinidades, emoções e coincidências que existiam entre nós. Não me importava muita coisa além daquele momento que nos unia por uma hora, talvez um dia, talvez uma vida.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Letras letras letras

Tanto tempo para perceber o óbvio. Para tocar, sentir, pisar e chutar o óbvio. Levamos uma eternidade para compreender as coisas de uma maneira que faça mais ou menos algum sentido, para formular uma sequência sem arrependimentos e para olhar sem receios. Cinco minutos são suficientes para desconstruir cinquenta anos de auto-tortura (existe o termo?), de culpas, medos e até uma certa incompletude. Meia dúzia de imbecilidades sem sentido. Letras letras letras vírgula letras sem sentido algum, sem a tentativa de um meio-termo, de entrelinhas, sem a expectativa das letras que não vieram. Letras que desejam escrever palavras mais ou menos ofensivas, caluniosas mas que só riem, dançam, sambam, l-i-v-r-e-s. Liberdade só tem sentido quando o coração se liberta. Toda outra liberdade é incompleta e insensata quando o coração se prende, a cabeça se culpa, a alma se corrói. Palavras que bailam sem amarras no ar, palavras que perdem a razão mas, da mesma forma, dão razão a todo o resto. São as palavras que prendem as mesmas capazes de libertar. São os sonhos que prendem aqueles capazes de libertar. É a vida que nunca prendeu aquela capaz de mostrar o quão preso se poderia ser.


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Fácil

Algumas coisas são mais fáceis se não pensadas. É não ensaiar na cabeça os gestos, medir as frases, calcular a rima e a significância das palavras, dos acenos, dos carinhos. Agir no susto. Fechar os olhos e simplesmente deixar ir embora o ímpeto e a vontade de reagir. Algumas coisas são mais fáceis se contarmos até dez. Ficam mais fáceis com o tempo, com o hábito, se tornam "acostumáveis". Algumas coisas são melhores com um pouco menos de tempo ocioso, melhores de cabeça ocupada, melhores se não existissem.
Apesar de conselhos, de tentativas, de empenho ou até de esquecimento, algumas coisas nunca serão fáceis.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Esposa Fragmentada

Foi ele quem disse isso enquanto catava, como de costume, meus vestígios espalhados pela casa; me descreveu esparramada por todos os cômodos em cada pequeno detalhe, embaixo do sofá ou em cima da cama. Não senti crítica nem desafio no tom com que me chamou de fragmentada, senti uma admiração desconfortável por já ter se acostumado a sutilmente acomodar meus objetos quando chega o final da noite, por reencontrá-los todos em algum canto, alguma caixa, depois do meu esforçado trabalho de desfazer tudo durante o dia. Sou assim mesmo, espalhada. Sou fragmentada em todas as coisas, iniciando em sentimentos e terminando com os tradicionais pares de sapato na entrada da casa. Preciso me esparramar para sentir meu aquele espaço, preciso me esparramar para que, todos os dias, ele tenha as pistas exatas das coisas que fiz enquanto esteve fora. Percorre a minha trilha, acumula as minhas coisas no colo e, sem perceber, faz de mim um pequeno altar - como faço com as toalhas penduradas nas portas da casa e os livros empilhados por todos os ambientes que ele faz questão de deixar -, uma gentil lembrança para que se faça presente mesmo nos momentos de ausência. Não vejo maldade nem desorganização que justifiquem os sapatos sempre na porta de casa nem nas canecas em ordem ao lado da escrivaninha nem no livro marcado com embalagem dos biscoitos que comi; vejo uma forma discreta, sincera e amiga de dizer que estou em casa, que eu estou bem.
Ser fragmentada é mais do que divisão, é o esparramar durante o dia para só me rever inteira com ele, no chegar da noite.

É o amor percorrendo a sua trilha.