sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Letras letras letras

Tanto tempo para perceber o óbvio. Para tocar, sentir, pisar e chutar o óbvio. Levamos uma eternidade para compreender as coisas de uma maneira que faça mais ou menos algum sentido, para formular uma sequência sem arrependimentos e para olhar sem receios. Cinco minutos são suficientes para desconstruir cinquenta anos de auto-tortura (existe o termo?), de culpas, medos e até uma certa incompletude. Meia dúzia de imbecilidades sem sentido. Letras letras letras vírgula letras sem sentido algum, sem a tentativa de um meio-termo, de entrelinhas, sem a expectativa das letras que não vieram. Letras que desejam escrever palavras mais ou menos ofensivas, caluniosas mas que só riem, dançam, sambam, l-i-v-r-e-s. Liberdade só tem sentido quando o coração se liberta. Toda outra liberdade é incompleta e insensata quando o coração se prende, a cabeça se culpa, a alma se corrói. Palavras que bailam sem amarras no ar, palavras que perdem a razão mas, da mesma forma, dão razão a todo o resto. São as palavras que prendem as mesmas capazes de libertar. São os sonhos que prendem aqueles capazes de libertar. É a vida que nunca prendeu aquela capaz de mostrar o quão preso se poderia ser.


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Fácil

Algumas coisas são mais fáceis se não pensadas. É não ensaiar na cabeça os gestos, medir as frases, calcular a rima e a significância das palavras, dos acenos, dos carinhos. Agir no susto. Fechar os olhos e simplesmente deixar ir embora o ímpeto e a vontade de reagir. Algumas coisas são mais fáceis se contarmos até dez. Ficam mais fáceis com o tempo, com o hábito, se tornam "acostumáveis". Algumas coisas são melhores com um pouco menos de tempo ocioso, melhores de cabeça ocupada, melhores se não existissem.
Apesar de conselhos, de tentativas, de empenho ou até de esquecimento, algumas coisas nunca serão fáceis.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Esposa Fragmentada

Foi ele quem disse isso enquanto catava, como de costume, meus vestígios espalhados pela casa; me descreveu esparramada por todos os cômodos em cada pequeno detalhe, embaixo do sofá ou em cima da cama. Não senti crítica nem desafio no tom com que me chamou de fragmentada, senti uma admiração desconfortável por já ter se acostumado a sutilmente acomodar meus objetos quando chega o final da noite, por reencontrá-los todos em algum canto, alguma caixa, depois do meu esforçado trabalho de desfazer tudo durante o dia. Sou assim mesmo, espalhada. Sou fragmentada em todas as coisas, iniciando em sentimentos e terminando com os tradicionais pares de sapato na entrada da casa. Preciso me esparramar para sentir meu aquele espaço, preciso me esparramar para que, todos os dias, ele tenha as pistas exatas das coisas que fiz enquanto esteve fora. Percorre a minha trilha, acumula as minhas coisas no colo e, sem perceber, faz de mim um pequeno altar - como faço com as toalhas penduradas nas portas da casa e os livros empilhados por todos os ambientes que ele faz questão de deixar -, uma gentil lembrança para que se faça presente mesmo nos momentos de ausência. Não vejo maldade nem desorganização que justifiquem os sapatos sempre na porta de casa nem nas canecas em ordem ao lado da escrivaninha nem no livro marcado com embalagem dos biscoitos que comi; vejo uma forma discreta, sincera e amiga de dizer que estou em casa, que eu estou bem.
Ser fragmentada é mais do que divisão, é o esparramar durante o dia para só me rever inteira com ele, no chegar da noite.

É o amor percorrendo a sua trilha.