quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Atrapado

Faltam dedos nas mãos para não se perder em tantos anos de saudades. Os desencontros já não se contabilizam em semanas nem meses, somam-se em décadas frias e confusas pela passagem do tempo. Faz tantos anos que o espaço destinado à tua falta transbordou, que tua presença se esparrama pelos cantos, pinga pelas frestas dos armários e deixa um rastro inconfundível pelo chão.
Mesmo assim, continuo com o ritual iniciado sabe-se lá há quanto tempo, tanto quanto meus dedos não sabem comportar. Ainda tempero meu corpo com a baunilha que roubo da cozinha, unto a pele no mesmo alecrim, banho cada vinco e tatuagem com os aromas que fizeste cultivar em mim. Pinto as unhas do mesmo céu estrelado, saboreio a mesma goma de sabor odioso e repetitivo.
No somar de anos e resultar em décadas, em pleno sonho me encontro repentinamente em um baile de gala. Descubro ser eu a anfitriã entre tantos rostos desconhecidos. Meu perfume é o mesmo, as minhas mãos ainda têm os mesmos dedos pequenos e finos, o mesmo anel, mas é visível a passagem do tempo. Entre tantas sombras e vultos sem significado algum, reencontro teu rosto tão conhecido e me surpreendo ao perceber a continuidade da nossa história, em outro tempo, em outro lugar, em mim.
Somos nós, a filha nascida, os outros filhos que reconheço sem ainda habitarem esse mundo, os mesmos gestos, o olhar que paralisa e faz gelar. Sou, em ti, a nossa história completa. Meu tom de voz, naturalmente agressivo, torna-se doce na tua presença; minha rouquidão vira música e me reconheço apenas pela tua familiaridade com meu corpo, que já há tanto não me faz habitar tão confortavelmente quanto antes; meus olhos refletem mais verdes ao cruzar com os teus, meus lábios te esperam, como se jamais tivessem te encontrado antes.
Envolta no nosso abraço interminável, o encontro de tantos descaminhos e tanto amor recolhido pelo caminho. Vestida pelos teus braços, complementando tua pele, somos somente nós e já não importam as décadas, os séculos, os milênios, os mundos. Já não importa as bagagens que trago, sou abraçada com todo meu passado, meu futuro e meus planos. Meus medos se perdem pelo caminho, já não importam as estradas paralelas que tivemos que trilhar até encontrar uma rota comum.

Meu sonho, teu, de encontrar-te ao abrir a desconhecida porta numa vida qualquer. 

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