terça-feira, 10 de junho de 2014

De uma tarde memorável (ou: para Ana - porque não consigo terminar "A Náusea")

Era uma tarde normal como quase todas as outras, nublada e um pouco mais fria que o esperado para os últimos suspiros de abril. Era uma tarde tão absolutamente ordinária que, por não trazer consigo nenhuma grande expectativa, me marcou de um jeito incrível. Precisava comprar um caderno, e não sei exatamente em que momento um banco no meio do calçadão, guardado por uma árvore que dançava ao intenso vento, me convidou para sentar. Era o banco em frente à papelaria. E ali, Ana, o dia mais ordinário dos dias começava a marcar suas impressões em mim.
Um moço pediu licença, sentou ao lado e abriu um livro. Espiei, era poesia. Enquanto sentada, esperando a chuva finalmente cair ou alguém que nunca chegaria, vasculhei a bolsa e encontrei "A Náusea". Eu já estava, como sempre, adiantada: olhei o relógio e ainda faltava quinze minutos para as cinco horas. Decidi permanecer ali, lendo, esperando sem saber bem pelo quê. Recomecei a leitura, ainda no início do livro, nas primeiras sensações de vertigem do personagem principal. De repente, três pessoas se instalaram ao lado da papelaria, duas meninas e um rapaz que puxaram uma escaleta da mochila, estenderam um pano e começaram a cantar e tocar.
Cantavam em espanhol, as músicas mais lindas que já ouvi. A voz da menina que interpretava as canções tinha um quê de choro, uma dorzinha escondida no fundo da melodia. Em espanhol, o idioma com que meu ouvido já se familiarizou por aqui e que me fez lembrar de casa mesmo estando longe. Um desavisado conhecido poderia achar que eu armara toda a beleza do canto e da cena. E, com a música tocando, o moço lendo, o vento ventando e a chuva finalmente aparecendo, foi impossível me concentrar na leitura. Minhas mãos suavam, minha perna tremia e meu coração parecia querer bater fora do peito. O som fino da escaleta era o único capaz de concorrer com o barulho ensurdecedor do meu próprio peito.
Senti ali, Ana, a tal náusea. Como uma vertigem que me puxava para baixo enquanto me deixava inerte. Era impossível me mexer, sair daquela cena, eu estava anestesiada. Era impossível me proteger dos pingos esparsos que insistiam em me encontrar embaixo da árvore. Já era impossível esquecer aquela tarde.
Não consegui comprar o caderno. Quando consegui me mexer, foi para finalmente entender que eu não tinha razões para esperar. Não havia porque estar ali. Ninguém jamais chegaria a tempo. Encontrei um abraço amigo, ainda nauseada, com o coração batendo na porta do ouvido, e assim o mundo voltou para o seu eixo. Mas não consigo abrir novamente o livro. A cada linha, me remeto novamente àquela tarde, tão linda, tão única, tão vertiginosa. Precisaremos de outros livros para debater.

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