terça-feira, 24 de junho de 2014

No Altar

Bebia vinho, contrariando a recomendação médica, que a proibia de beber durante o tratamento. Aproveitava as receitas trimestrais para encher os bolsos de antidepressivos e degustava os comprimidos durante todo o dia, como se fossem balinhas coloridas de açúcar ou pequenas doses de entusiasmo. Perdera as contas de quantos mastigara nas últimas horas, envolta nas brumas da bebida e na suave confusão dos tempos. 
Lembrou da única vez, em tantos anos, em que pôs os pés em uma igreja. Ele fê-la visitar uma das grandes, imponentes, com aquela luz dourada que emana dos seus castiçais de velas falsas. Fê-la encostar no marco de entrada, acariciar a madeira das portas e bancos, percorrer com os dedos cada detalhe trabalhado nas superfícies pintadas de dourado, falar baixinho, chegar perto e sussurrar no ouvido. Ele contava a história do lugar. Fez com que ficassem à distância de um par de lábios imóveis, impotentes, desencorajados. Logo ela, que odiava os simbolismos religiosos e toda ausência de referências que a provocavam, pisou em solo santo levada pelo argumento da beleza do lugar. Levada, na verdade, por ele. Por não conseguir resistir àquele par de olhos verdes e insistentes. Por tudo que levá-lo ao altar numa manhã ao acaso poderia significar.
Completamente entregue à memória, conseguiu sentir o odor do sebo das velas próximas ao altar, relembrar o roçar proposital dos braços, a caminhada lado a lado ao atravessar a igreja. Reviveu seu cheiro, mistura de perfume com a goma de mascar que nunca jogava fora. Entreviu, escondido nas imagens do altar, um deus irônico, no qual não acreditava, que ria ao vê-la completamente entregue naqueles degraus, diante de todas os símbolos e ídolos para quem não rezava e não pedia permissões. Desejou ajoelhar-se ali mesmo, não para pedir perdão aos santos e ao deus que voltara às suas ocupações, mas para pedir àquele homem que ficasse. Desejou pegar-lhe a mão e pedi-la para sempre, segundo a lei desse mesmo deus, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença.
Recobrou a consciência algum tempo depois. Se descobriu entre o cheiro persistente e o aperto de uma saudade desconhecida. Totalmente perdida, não soube dizer se realmente se ajoelhara diante do altar, não conseguiu saber se o deus estivera realmente lá. Só conseguia pensar que, tendo se ajoelhado e agora acordando sozinha em uma cama imensa, a resposta deve ter sido não. Mais um motivo para não crer naquele deus de altares dourados, nem naqueles olhos de perdição. E procurou mais pílulas para esquecer a dor que afligia o peito.

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