quarta-feira, 4 de junho de 2014

Conto pra distrair: na pele

Tinha um fraco antigo por marcas. Ainda criança, demorava os dedos nos vincos formados na pele pela pressão das roupas. Despia-se e começava a carícia sobre os relevos. Os tornozelos, com a saída das meias, as tênues marcas ocasionadas pela pressão dos sapatos calçados o dia todo, a depressão levemente rosada que se prolongava depois de ter o pulso apertado por um elástico. Gostava da marca que permanecia no corpo. Descobriu gostar também das marcas nas outras pessoas. 
Depois percebeu também sua fragilidade diante de tatuagens. Não tinham relevo, na sua maioria, mas causavam nela o mesmo entusiasmo e deleite que os vincos profundos. Os desenhos, as cores, os significados e as histórias por trás de cada marca a faziam perder-se por horas nos contornos de uma pele conhecida. Desejava desvendar cada dono por trás de uma imagem perpetuada na pele, penetrar em cada entrelinha contida nas hesitações da mão do desenhista, dos sentimentos que permeavam cada volta, cada sombra, cada luz. Apaixonou-se por uma tatuagem, um dia, e por seu dono como consequência. Precisava estar perto daquele desenho desconhecido, daquela pele marcada. Sabia a descrição, porém jamais fora convidada a tatear seu corpo, a desvendar suas marcas. Tinha certeza que seria capaz de reconhecer aquela tatuagem nunca vista entre tantas outras desconhecidas, tantas as horas que ganhava perdendo seus dedos imaginários em cada contorno inexistente.
Notou, pouco tempo depois, que sua paixão expandia-se para além das marcas efêmeras da pressão sobre a pele e das marcas sem relevo dos desenhos escritos para sempre na pele. Percebeu admirar as cicatrizes. Passou a vasculhar as pernas, tão postas à prova durante a infância, buscando as suas marcas. Encontrou vestígios de si nos joelhos, nos tornozelos, nos dedos das mãos, no pescoço, nos lábios, nas pernas, no ventre. Encontrou uma tatuagem que seu próprio corpo havia se encarregado de fazer: uma marca de nascimento em formato de coração, no interior da perna. Descobriu-se outra, contada a partir das cicatrizes. Passou a apreciar as leves irregularidades das estrias que marcavam as pernas, a explorar sua história através das cicatrizes deixadas pelas histórias. 
Lembrou da tatuagem nunca vista e que, naquela mesma pele, havia uma cicatriz. Dividida em duas, rasgada por um bisturi, desejou refazer seus contornos recém fechados com a suavidade das pontas dos dedos. Desejou curar as feridas pelo toque, beijá-las até que seus extremos se tornassem conhecidos. 
Do amor pelas feridas e do desejo de acariciá-las até a cura, percebeu gostar também de rever as cicatrizes da alma. Passa os dias mensurando, revivendo e explorando toda e qualquer marca do coração. Sem objetivos, sem pretensões, sem nostalgia nem remorso. Explorando, como um carinho nas pernas marcadas, no pulso atado, como uma forma de aliviar a pressão das marcas jamais feitas. Descobrindo seus desenhos invisíveis, na impossibilidade de tocá-los ou beijá-los até a cura, desejou escrever. E hoje escreve, como quem acaricia um corpo, como quem desbrava uma tatuagem em seus contornos. Escreve para acalmar a alma.

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