Gostaria de ver teus olhos, Alice. Perco minutos preciosos nessas semanas corridas de estudos imaginando como serão teus cabelos, teu sorriso, tuas sombras. Descobrir tua figura enigmática que me perturba a cada poema em que leio teu nome, conhecer quem merece ser Alice diante de tantas belas palavras. Gostaria de conhecer teus sonhos, Alice. Saber tuas angústias, teus anseios, as linhas do teu rosto e as marcas das tuas mãos. Conhecer-te, imitar-te. Para chegar a ser Alice, merecedora de todos os sonhos e reverências do mundo; para dedicar a ti, Alice, o que me restaram de sonhos e angústias e desejos no mundo.
terça-feira, 5 de agosto de 2014
quinta-feira, 17 de julho de 2014
Querido Diário
Eu e minha tela branca à frente. Puxa, faz tempo que não
falo como dizem os poetas, com o coração. E realmente não é pra ficar bonito. É
num mar de soluços que me encontro. Quem dera fosse de rir. Acredite, eu
costumava gostar da minha companhia. Eu costumava me deliciar em manhãs com meus
cafés múltiplos e cheirosos que se acumulavam em fileiras de xícaras coloridas
na minha escrivaninha branca, e o Sol ia beijando devagarinho meus papéis
enquanto eu fazia o que tinha que fazer, seja lá o que fosse. Puxa, eu gostava
mesmo de mim há uns anos atrás. Como era bom aproveitar uma música e planejar
simplesmente o que eu iria fazer no final de semana. Como era boa a vida
simples que eu levava. Há dois anos atrás, parece que nada ficou tão simples
assim mais.
Dizem que quando a gente se apaixona, a gente esquece da
gente. E o tempo não é mais como era antigamente. Ele muda, pra uns passa mais
rápido, pra outros simplesmente para. Eu não sei como foi comigo, mas sei que
com 1 mês parecia que nos conhecíamos há 10 e com 1 ano depois de tanta
confusão, sentia que tinham sido duas vidas terrenas. Esses dois anos já se
perderam na minha cabeça, a contagem ficou louca e minhas memórias meio que se
atravessam umas pelas outras, dançando tristemente pelo passado. Ora essa...
Tanta coisa boa vivida pra se sentir grata, e, sim, em momentos de paz eu me
sinto grata. Mas, bem, como eu controlo o tempo do restante da minha vida? Como
pensar nos próximos 10, 100, 1000 meses que eu (espero) viver. Como pode ser
tão doída a imagem de mim mesma sem ti? Será que isso é amor? Será que se sofre
por amor? Me disseram que o amor era uma coisa boa... E agora?
É engraçado e estúpido se apaixonar. É engraçado porque
lembro das minhas escolhas nada racionais e fico pensando no porquê de tudo
isso. Por que sentia a tamanha necessidade, parecida com a que sinto agora, de
ir atrás daquele objeto tão desejado? Por que nunca aceitei o que era tão
óbvio? Que não poderia dar certo. E isso sempre foi um fato, não adianta. E eu
sabia, no fundo, eu sabia. E por que insistia tanto? Eu simplesmente achava que
tudo era possível, que era passível de mudança e ressignificados. Eu acreditava
como uma criança que crê em Papai Noel. Com todo o meu amor, minha força e meu
otimismo, nunca me faltou coragem para arriscar. Eu queria me jogar. Queria
morrer de amor. Queria. E agora, as minhas cinzas me entristecem. Não há glória
em finais tristes. Ninguém me parabenizou ou bateu palmas. Não ganhei troféu ou
medalha. E nem uma carta, sequer. Na minha porta não bate ninguém e minha
companhia parece estar vivendo em um mundo sombrio. Falam-me de liberdade e ela
tem uma cara bem desafiadora para mim. Eu não tenho nada a perder e isso nunca
soou tão estranho...
sexta-feira, 11 de julho de 2014
Interminável Escuridão
Passei a noite em claro, encarando a lua cheia que banhava a janela, para organizar tudo que preciso te dizer, de uma forma mais ou menos coerente. Contar como as noites se tornam especialmente silenciosas quando não contam com a melodia tranquila da tua respiração ao dormir, enquanto contabilizo estrelas cadentes. Contar como me envolvo em histórias de todos os tempos e todos os personagens, mesmo sem querer, para te perceber em cada romance frustrado e te descobrir me esperando na minha próxima contradição. Contar que toda profundidade de olhares, memórias, aromas e gestos torna-se superficial quando projetadas à nossa tão entranhada relação.
Joguei pequenos punhados de areia pela janela do sétimo andar, uma para cada pendência a resolver. Poderia ter soterrado o mundo nessa noite. Joguei um punhado para cada amor passado, para cada caminho que percorri e para cada atalho que me fez chegar até teus olhos, tão distintos de todos os olhos que já haviam percorrido minhas marcas e o meu corpo. Teus olhos que não se esquivam de me encarar e não deixam um momento de me dominar. Para minhas turbulências individuais, mais um punhado de areia, que se esvaiu lentamente entre os dedos. Sei da minha constante retomada do passado, sei das tuas objeções e sei das nossas diferentes percepções. Sei ainda que poderia escrever hoje de forma menos superficial do que faço.
Prometi que não me estenderia ao amanhecer. Olhei para baixo, toda a terra quase imperceptível pela altura. Eu não tinha medo da distância que me separava do solo. Findo o arremesso, pois não sobrara grão de areia, restava arremessar as flores, os frutos, as folhas repletas de distintos aromas. Cogitei juntar meu corpo aos punhados atirados ao vento. Me lancei sobre o parapeito, mas impediu minha visão o primeiro raio de sol. Na cama teu corpo, teus olhos que cerrados não expressavam todo o impacto que tinham sobre mim, tuas mãos conhecedoras de cada vinco do meu ser. Dormir, ao teu lado, mais uma noite. Sem os demônios que atormentam, sem os dilemas que angustiam, todos desprezados feito porções de terra ao vento do sétimo andar. Ao menos até o sol se por outra vez...
quinta-feira, 3 de julho de 2014
Cozinhar como Oração
Levo o coração na ponta dos dedos, no brilho dos olhos, nas papilas da língua. Levo o amor em toda minha tentativa culinária, em qualquer utensílio que vou estrear, em toda xícara de açúcar despejada sobre a manteiga batida. Meu coração está esfriando, em cima do forno, esperando para ser desenformado. Ele hoje foi tingido com beterrabas, daqui a pouco será temperado com curry; vai receber recheio de creme azedo e ser enfeitado com morangos frescos. Meu coração é do tamanho de todas as provas da comida que faço. Cozinhar é minha oração diária, a prece que secretamente diz eu te amo e faz desse amor mistura com um fouet brilhante. Te provando, te reinventando e te alimentando com meu amor, meu coração cresce. Cresce como o fermento caseiro que deu tão certo no bolo de hoje. Cresce com uma vontade infindável de declarar meu amor.
quinta-feira, 26 de junho de 2014
Ojos Verdes
Porque sempre que eu escrever qualquer coisa que precise descrever um par de olhos lindos, eles serão verdes. Nem azuis como o céu do meu pai, nem castanhos e cheios de brilho como os da minha filha. Eles serão verdes, de um verde escuro, manchado, como que corroído pelas histórias e pelo amor que passou por eles. Serão verdes como os do meu avô ou, que presunção, verdes como os meus olhos verdes. Serão verdes como olhos inesquecíveis com os quais todos esbarramos na vida...
Partida
Não sei. De repente o barulho da chuva me despertou a vontade de traduzir-nos em palavras.
O relógio se quebrou... Na dura realidade da nossa despedida, em que cada passo adiante te levava para mais longe do que há um instante era meu. Como conter tamanha emoção, a de te perder? Aprendi que é cuidando que se ama, e que se ama, cuidando. Ao saíres pela porta perdi mais do que um amor. Não sei bem o que era. Mas é como se perdesse mais do que podia realmente perder. No dia seguinte era difícil saber quem eu era. Era difícil limpar minha mente. A cada minuto o que vivi se tornava passado e as memórias eram cada vez mais pesadas. Hoje, porém, me esforço para lembrar-me do teu rosto. Rosto, esse, que foi tão adorado, tão idealizado. E eu amava, amava e amava. Não me satisfazia nunca. Eu sempre queria mais. Eu sabia que uma vida ao teu lado não me satisfaria nem por um momento sequer minha vontade de te amar. A verdade é que eu nunca me completaria com a sobra de algo que não encaixava bem. Por isso, gastava minhas horas me fundindo a ti, para ver se de algum jeito me davas o que eu precisava. O que eu achava que precisava. E o que era mesmo? O que era mesmo que eu precisava? Eu não sei. Nunca soube. E então me apegava nas migalhas que eu tinha. Minhas adoráveis migalhinhas. E eu amava, amava e amava.
O relógio se quebrou... Na dura realidade da nossa despedida, em que cada passo adiante te levava para mais longe do que há um instante era meu. Como conter tamanha emoção, a de te perder? Aprendi que é cuidando que se ama, e que se ama, cuidando. Ao saíres pela porta perdi mais do que um amor. Não sei bem o que era. Mas é como se perdesse mais do que podia realmente perder. No dia seguinte era difícil saber quem eu era. Era difícil limpar minha mente. A cada minuto o que vivi se tornava passado e as memórias eram cada vez mais pesadas. Hoje, porém, me esforço para lembrar-me do teu rosto. Rosto, esse, que foi tão adorado, tão idealizado. E eu amava, amava e amava. Não me satisfazia nunca. Eu sempre queria mais. Eu sabia que uma vida ao teu lado não me satisfaria nem por um momento sequer minha vontade de te amar. A verdade é que eu nunca me completaria com a sobra de algo que não encaixava bem. Por isso, gastava minhas horas me fundindo a ti, para ver se de algum jeito me davas o que eu precisava. O que eu achava que precisava. E o que era mesmo? O que era mesmo que eu precisava? Eu não sei. Nunca soube. E então me apegava nas migalhas que eu tinha. Minhas adoráveis migalhinhas. E eu amava, amava e amava.
terça-feira, 24 de junho de 2014
No Altar
Bebia vinho, contrariando a recomendação médica, que a proibia de beber durante o tratamento. Aproveitava as receitas trimestrais para encher os bolsos de antidepressivos e degustava os comprimidos durante todo o dia, como se fossem balinhas coloridas de açúcar ou pequenas doses de entusiasmo. Perdera as contas de quantos mastigara nas últimas horas, envolta nas brumas da bebida e na suave confusão dos tempos.
Lembrou da única vez, em tantos anos, em que pôs os pés em uma igreja. Ele fê-la visitar uma das grandes, imponentes, com aquela luz dourada que emana dos seus castiçais de velas falsas. Fê-la encostar no marco de entrada, acariciar a madeira das portas e bancos, percorrer com os dedos cada detalhe trabalhado nas superfícies pintadas de dourado, falar baixinho, chegar perto e sussurrar no ouvido. Ele contava a história do lugar. Fez com que ficassem à distância de um par de lábios imóveis, impotentes, desencorajados. Logo ela, que odiava os simbolismos religiosos e toda ausência de referências que a provocavam, pisou em solo santo levada pelo argumento da beleza do lugar. Levada, na verdade, por ele. Por não conseguir resistir àquele par de olhos verdes e insistentes. Por tudo que levá-lo ao altar numa manhã ao acaso poderia significar.
Completamente entregue à memória, conseguiu sentir o odor do sebo das velas próximas ao altar, relembrar o roçar proposital dos braços, a caminhada lado a lado ao atravessar a igreja. Reviveu seu cheiro, mistura de perfume com a goma de mascar que nunca jogava fora. Entreviu, escondido nas imagens do altar, um deus irônico, no qual não acreditava, que ria ao vê-la completamente entregue naqueles degraus, diante de todas os símbolos e ídolos para quem não rezava e não pedia permissões. Desejou ajoelhar-se ali mesmo, não para pedir perdão aos santos e ao deus que voltara às suas ocupações, mas para pedir àquele homem que ficasse. Desejou pegar-lhe a mão e pedi-la para sempre, segundo a lei desse mesmo deus, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença.
Recobrou a consciência algum tempo depois. Se descobriu entre o cheiro persistente e o aperto de uma saudade desconhecida. Totalmente perdida, não soube dizer se realmente se ajoelhara diante do altar, não conseguiu saber se o deus estivera realmente lá. Só conseguia pensar que, tendo se ajoelhado e agora acordando sozinha em uma cama imensa, a resposta deve ter sido não. Mais um motivo para não crer naquele deus de altares dourados, nem naqueles olhos de perdição. E procurou mais pílulas para esquecer a dor que afligia o peito.
Completamente entregue à memória, conseguiu sentir o odor do sebo das velas próximas ao altar, relembrar o roçar proposital dos braços, a caminhada lado a lado ao atravessar a igreja. Reviveu seu cheiro, mistura de perfume com a goma de mascar que nunca jogava fora. Entreviu, escondido nas imagens do altar, um deus irônico, no qual não acreditava, que ria ao vê-la completamente entregue naqueles degraus, diante de todas os símbolos e ídolos para quem não rezava e não pedia permissões. Desejou ajoelhar-se ali mesmo, não para pedir perdão aos santos e ao deus que voltara às suas ocupações, mas para pedir àquele homem que ficasse. Desejou pegar-lhe a mão e pedi-la para sempre, segundo a lei desse mesmo deus, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença.
Recobrou a consciência algum tempo depois. Se descobriu entre o cheiro persistente e o aperto de uma saudade desconhecida. Totalmente perdida, não soube dizer se realmente se ajoelhara diante do altar, não conseguiu saber se o deus estivera realmente lá. Só conseguia pensar que, tendo se ajoelhado e agora acordando sozinha em uma cama imensa, a resposta deve ter sido não. Mais um motivo para não crer naquele deus de altares dourados, nem naqueles olhos de perdição. E procurou mais pílulas para esquecer a dor que afligia o peito.
quarta-feira, 18 de junho de 2014
Das Sensações Cotidianas
Essa sensação diária parecida com leves cócegas que dão vontade de abrir as bochechas e mostrar os dentes deve ser, na verdade, a coisa mais próxima daquilo que chamam felicidade. Essa sensação vem acompanhada, em mim, do desejo de fechar os olhos por um só segundo. Ela acontece quando fico acordada até mais tarde e, ao deitar, encontro um par de pés quentinhos para me enroscar no rigor do inverno. Acontece quando consigo ver uma pequena criança aprendendo a vestir toda a roupa sozinha. Acontece quando saio e alguém desconhecido me abre um sorriso. Acontece quando ouço músicas que marcaram a vida, acontece quando ouço músicas que não significam nada.
Esse transbordamento escapa pelo sorriso, contamina os dentes e abraça as orelhas. Chega com um café inesperado enquanto escrevo, chega com a expectativa de amanhã festejar com os amigos. Chega quando saio para procurar belas árvores para lembrar dela. O sorriso abre quando, um certo dia, percebo que alguém que já amei muito hoje ama outra pessoa. E é amado. E isso não acende nenhum desespero, nenhuma posse, nenhum rancor. Só gera o transbordar. Gera sorrisos. Gera mais amor. E isso tudo não pode ter outro nome que não seja felicidade...
terça-feira, 10 de junho de 2014
De uma tarde memorável (ou: para Ana - porque não consigo terminar "A Náusea")
Era uma tarde normal como quase todas as outras, nublada e um pouco mais fria que o esperado para os últimos suspiros de abril. Era uma tarde tão absolutamente ordinária que, por não trazer consigo nenhuma grande expectativa, me marcou de um jeito incrível. Precisava comprar um caderno, e não sei exatamente em que momento um banco no meio do calçadão, guardado por uma árvore que dançava ao intenso vento, me convidou para sentar. Era o banco em frente à papelaria. E ali, Ana, o dia mais ordinário dos dias começava a marcar suas impressões em mim.
Um moço pediu licença, sentou ao lado e abriu um livro. Espiei, era poesia. Enquanto sentada, esperando a chuva finalmente cair ou alguém que nunca chegaria, vasculhei a bolsa e encontrei "A Náusea". Eu já estava, como sempre, adiantada: olhei o relógio e ainda faltava quinze minutos para as cinco horas. Decidi permanecer ali, lendo, esperando sem saber bem pelo quê. Recomecei a leitura, ainda no início do livro, nas primeiras sensações de vertigem do personagem principal. De repente, três pessoas se instalaram ao lado da papelaria, duas meninas e um rapaz que puxaram uma escaleta da mochila, estenderam um pano e começaram a cantar e tocar.
Cantavam em espanhol, as músicas mais lindas que já ouvi. A voz da menina que interpretava as canções tinha um quê de choro, uma dorzinha escondida no fundo da melodia. Em espanhol, o idioma com que meu ouvido já se familiarizou por aqui e que me fez lembrar de casa mesmo estando longe. Um desavisado conhecido poderia achar que eu armara toda a beleza do canto e da cena. E, com a música tocando, o moço lendo, o vento ventando e a chuva finalmente aparecendo, foi impossível me concentrar na leitura. Minhas mãos suavam, minha perna tremia e meu coração parecia querer bater fora do peito. O som fino da escaleta era o único capaz de concorrer com o barulho ensurdecedor do meu próprio peito.
Senti ali, Ana, a tal náusea. Como uma vertigem que me puxava para baixo enquanto me deixava inerte. Era impossível me mexer, sair daquela cena, eu estava anestesiada. Era impossível me proteger dos pingos esparsos que insistiam em me encontrar embaixo da árvore. Já era impossível esquecer aquela tarde.
Não consegui comprar o caderno. Quando consegui me mexer, foi para finalmente entender que eu não tinha razões para esperar. Não havia porque estar ali. Ninguém jamais chegaria a tempo. Encontrei um abraço amigo, ainda nauseada, com o coração batendo na porta do ouvido, e assim o mundo voltou para o seu eixo. Mas não consigo abrir novamente o livro. A cada linha, me remeto novamente àquela tarde, tão linda, tão única, tão vertiginosa. Precisaremos de outros livros para debater.
quarta-feira, 4 de junho de 2014
Conto pra distrair: na pele
Tinha um fraco antigo por marcas. Ainda criança, demorava os dedos nos vincos formados na pele pela pressão das roupas. Despia-se e começava a carícia sobre os relevos. Os tornozelos, com a saída das meias, as tênues marcas ocasionadas pela pressão dos sapatos calçados o dia todo, a depressão levemente rosada que se prolongava depois de ter o pulso apertado por um elástico. Gostava da marca que permanecia no corpo. Descobriu gostar também das marcas nas outras pessoas.
Depois percebeu também sua fragilidade diante de tatuagens. Não tinham relevo, na sua maioria, mas causavam nela o mesmo entusiasmo e deleite que os vincos profundos. Os desenhos, as cores, os significados e as histórias por trás de cada marca a faziam perder-se por horas nos contornos de uma pele conhecida. Desejava desvendar cada dono por trás de uma imagem perpetuada na pele, penetrar em cada entrelinha contida nas hesitações da mão do desenhista, dos sentimentos que permeavam cada volta, cada sombra, cada luz. Apaixonou-se por uma tatuagem, um dia, e por seu dono como consequência. Precisava estar perto daquele desenho desconhecido, daquela pele marcada. Sabia a descrição, porém jamais fora convidada a tatear seu corpo, a desvendar suas marcas. Tinha certeza que seria capaz de reconhecer aquela tatuagem nunca vista entre tantas outras desconhecidas, tantas as horas que ganhava perdendo seus dedos imaginários em cada contorno inexistente.
Notou, pouco tempo depois, que sua paixão expandia-se para além das marcas efêmeras da pressão sobre a pele e das marcas sem relevo dos desenhos escritos para sempre na pele. Percebeu admirar as cicatrizes. Passou a vasculhar as pernas, tão postas à prova durante a infância, buscando as suas marcas. Encontrou vestígios de si nos joelhos, nos tornozelos, nos dedos das mãos, no pescoço, nos lábios, nas pernas, no ventre. Encontrou uma tatuagem que seu próprio corpo havia se encarregado de fazer: uma marca de nascimento em formato de coração, no interior da perna. Descobriu-se outra, contada a partir das cicatrizes. Passou a apreciar as leves irregularidades das estrias que marcavam as pernas, a explorar sua história através das cicatrizes deixadas pelas histórias.
Lembrou da tatuagem nunca vista e que, naquela mesma pele, havia uma cicatriz. Dividida em duas, rasgada por um bisturi, desejou refazer seus contornos recém fechados com a suavidade das pontas dos dedos. Desejou curar as feridas pelo toque, beijá-las até que seus extremos se tornassem conhecidos.
Do amor pelas feridas e do desejo de acariciá-las até a cura, percebeu gostar também de rever as cicatrizes da alma. Passa os dias mensurando, revivendo e explorando toda e qualquer marca do coração. Sem objetivos, sem pretensões, sem nostalgia nem remorso. Explorando, como um carinho nas pernas marcadas, no pulso atado, como uma forma de aliviar a pressão das marcas jamais feitas. Descobrindo seus desenhos invisíveis, na impossibilidade de tocá-los ou beijá-los até a cura, desejou escrever. E hoje escreve, como quem acaricia um corpo, como quem desbrava uma tatuagem em seus contornos. Escreve para acalmar a alma.
terça-feira, 27 de maio de 2014
Terceira Pessoa
Rendeu-se à tentação de abrir novamente o cartão vermelho. Depois de dois anos, tinha a esperança que as duas frases numa grafia perfeita de caneta azul tivessem desaparecido do papel. Sentiu-se uma intrusa no meio de um passado que desconhecia, de amores que ignorava e de tanta história que veio antes dela. Há muitos anos não sentia uma sensação parecida com ciúmes. Sentiu-se ferida, um sentimento que não era nem raiva nem dor a deixava surda e embrulhava o estômago. A frustração pelo tanto que dizia e pelo pouco que tudo ecoava.
Passou a noite entre sonhos e imaginação, sem distinguir direito quando estava dormia ou delirava. A palavra "tesão" retumbava insistente na cabeça. Não havia um nome, um rosto, uma história. Havia duas frases numa letra invejável, reticências cheias de insinuações e tesão, havia uma letra e um ponto. Havia, explícito, um desejo ali. Havia tesão e não restava mais nada. A angústia do desconhecido voltou, para ficar. Conseguiu imaginá-lo desejado, amado, retribuído. Frustrou-se ainda mais, frustrou-se pelo que lhe faltava, pela informação incompleta. Não conseguia mais tocá-lo. A lacuna era imensa, uma fenda que se estendia sob os seus pés e deixava aberto um abismo com difuso, enevoado, incompreensível.
Jamais seria parte daquilo tudo, nenhuma daquelas letras falavam dela. Nenhuma daquelas frases jamais a pertenceu. Ali, seria sempre a terceira pessoa. Impossível, inexistente, confusa. E a terceira pessoa nem sempre é o indivíduo número três, às vezes é só aquela pronta para dissimular a primeira do singular.
quinta-feira, 22 de maio de 2014
Conto pra distrair: Pós-operatório
Enfileirou os cartões bancários. Anotou as senhas de cada um. Releu as antigas cartas de amor vagarosamente. Fechou as cortinas do quarto azul. Organizou todos os papeis. Deixou sobre a agenda um envelope, antes de bater a porta atrás de si. Tinha certeza que poderia morrer, que algo poderia dar errado. Seu pessimismo era imbatível e não sentia medo, apenas vontade de ter tudo organizado caso o que cogitava acontecesse.
Quem o via organizando meticulosamente o quarto imaginava que se tratava de uma operação de alto risco, de um tumor maligno em estágio avançado. Ia retirar as amígdalas. Terminou o ritual de despedida, vestiu o traje hospitalar e esperou. Olhou longamente pela claridade da janela de vidros foscos e imaginou que poderia ser a última vez. Pensou que morreria satisfeito. Sem ter feito nada de grandioso, talvez com a trajetória um pouco abreviada, mas contente. A carta estava sobre a agenda e as recomendações claras de enviá-la no dia do seu enterro.
Declarava seu amor secreto, desde aquele primeiro encontro casual. Não sabia porque havia se apaixonado, não sabia porque jamais fora capaz de esquecer, mas sabia o motivo de nunca ter se declarado: estremecia ao cogitar a rejeição. Podia descrever seus dedos finos, as unhas lisas, uma leve marca no pescoço, detalhes captados ao acaso, quando a luz ofuscava a paisagem e só aquela visão era possível. Podia desenhar a expressão dos olhos ou falar demoradamente sobre as pernas que balançavam ou o hábito irritante de passar repetidas vezes as mãos no cabelo. Podia reproduzir mentalmente o timbre da sua voz, podia servir suas comidas preferidas, descrever a tatuagem ainda inacabada.
Despertou da anestesia. Pensou que estava vivo, mas que o pior estava por vir. Poderia morrer pelas complicações, por uma infecção, via mil novas oportunidades de deixar o mundo. Pensou, pela primeira vez, que talvez desejasse morrer. Mais do que ter consciência da possibilidade, desejava a morte, o fim, o túmulo, a lápide, o frio e a leveza. Desejava mais não ser. Dizia ser pessimista, mas nesse momento ainda grogue do pós-operatório, concluiu que era apenas covarde. Tinha medo do que viria depois, medo de arriscar, de amar, de sofrer, de ser, de não ser. Preferia a inexistência às incertezas de estar vivo.
Sobreviveu à recuperação, contrariando suas piores expectativas. Chegou em casa e, apesar de adiar o máximo que conseguiu esse momento, teve que abrir a porta do quarto. Reencontrar as cortinas fechadas, a cama meticulosamente arrumada, os cartões enfileirados, os papeis organizados, as cartas de amor lidas e o envelope sobre a agenda. O envelope... Sentiu vergonha de si mesmo. Desejou, mais do que nunca, morrer. Talvez um ataque cardíaco, que não desse chances de salvação. Sentiu-se sufocar, mas sem parar de respirar. A dor fazia ter vontade de vomitar. Vontade de curvar-se e chorar. Chorar todos os medos, todo o amor que poderia ter sido, todas as histórias que nunca saíram da imaginação. Releu a carta, a declaração, se imaginou descendo a sete palmos enquanto a surpresa arrebatava o leitor de tamanha revelação.
Recobrou o fôlego.
Respirou.
Tomou uma decisão.
Fora tudo efeito dos remédios.
Estava delirando.
Não esperou que a carta terminasse de ter queimada, com medo de se atrasar para os compromissos meticulosamente agendados. Temia que o ônibus pudesse estragar no meio do caminho e arruinar a programação diária. Voltou a temer, religiosamente. Voltou à covardia. Voltou ao que não era, agora sem as amígdalas. Não teve medo de morrer, mas não tinha coragem para viver. E o fogo consumiu o segredo que nunca revelaria.
terça-feira, 20 de maio de 2014
Conto para distrair: o garçom
Trabalhava há quinze anos no mesmo lugar, servindo as mesmas mesas e vendo a noite cair pelas janelas de uma esquina movimentada da cidade. Era garçom de um boteco importante, reconhecido pelos clientes fiéis e acostumado com a intensa correria de terça a domingo atrás do longo balcão de madeira. Casado há dez anos, conheceu a esposa no mesmo balcão escuro, pai de duas crianças e com uma insaciável curiosidade de viver outras experiências. Aprendeu a viver outras realidades enquanto servia bebidas para casais que escolhiam as mesas mais afastadas para ter sua conversa final. Aprendeu a diagnosticar, com folga, quais duplas ali entravam para dar fim aos seus relacionamentos, na segurança de uma mesa de distância do calor do corpo do outro. Com o tempo, começou a identificar também os rompimentos pelas bebidas, pela postura, pela comida não compartilhada. E fez do ouvido afinado uma arma para alimentar seu desejo de viver, enquanto via a vida passar pelo esverdear do semáforo onde ficava o boteco.
Na chegada de um casal, conseguia enxergar o desconcerto, o silêncio constrangido, apostar quais bebidas pediriam, a separação das comidas, das comandas, das mãos. E então se aproximava. Sempre escolhiam a mesa mais distante, o andar superior, a mesa com duas cadeiras opostas de frente para a vidraça. A visão para o andar de baixo era uma boa fuga de quem não queria olhar nos olhos ao chegar no fim. Atendia os pedidos, a bebida levemente alcoólica nos casos de encorajar as declarações de amor engasgadas, a secura da água sem gás para quem pretende encerrar o assunto antes de esvaziar o copo. A porção de alimento para quem desejava pretextos para alongar a conversa, a negação daqueles que não buscavam mais que uma resposta definitiva antes de sair dali. E ele se acomodava atrás, olhos no andar inferior, ouvidos nos romances inacabados da mesa logo ao lado. Caneta na mão, fingindo que fazia contas, conseguia anotar trechos do enredo, entender quem havia sido traído, quem havia desistido, quem cansou da relação e quem nunca a deixou existir. As mesmas pessoas que voltavam lá diversas vezes para terminar diferentes relacionamentos, e todas as histórias se encaixavam como se bailassem perfeitamente harmônicas entre a fumaça da fritura e o hálito de cerveja.
Um dia, resolveu dar fim no bloco onde anotava os desfechos das histórias e poucos dos nomes que conseguia compreender entre sussurros, soluços e vozes embargadas. Sem coragem de se desfazer de todos aqueles anos de atenção às intimidades alheias, escreveu um livro. Alterou os nomes, cruzou as histórias que coexistiam nas consecutivas folhas de papel e ficou famoso. Finalmente deixou de ser "o garçom". Passou a ser reconhecido pelo nome e foi premiado pela realidade das suas histórias. Muitos daqueles que lá terminaram suas histórias, ao seu lado, se identificaram com seus dramas e (des)amores, mas nunca conseguiram perceber suas próprias vidas contadas pelo punho do homem que assinalava xis nas comandas. Quando insistiu ao chefe para permanecer servindo o segundo andar do estabelecimento, foi chamado de louco. Mal sabe ele que, enquanto houver vidraças para dissimular, amores por terminar e uma mesa para afastar, o garçom sempre terá histórias pra contar.
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Voltar (ou tanto tempo depois)
Mais uma segunda-feira.
Voltar e te encarar depois de tanto tempo, ainda confessor dos meus maiores segredos. Voltar e ler em ti os mesmos sentimentos, tão conhecidos e ao mesmo tempo tão novos ao serem relidos através da luz de um sol poente. Te reler sob as mesmas árvores, o mesmo banco. Te ouvir sendo meu eco, como se estivesse logo ali do outro lado da mesa. Ter que deitar para olhar por baixo as folhas embaladas pelo vento do fim da tarde que me sopram tudo o que já te disse e que jamais permaneceu em segredo. Ler em ti as tão velhas novas angústias diárias, o amor tão desfeito, refeito e malfeito. Te beber inteiro em um só gole, sem jamais me saciar nem me dar um porquê. Voltar pra ti, depois de tantas folhas jogadas fora, tantas canetas gastas, tantas músicas mal empregadas, tanto pouco sofrimento mal sofrido, depois de tantos outros amores. Te ver abrir os braços, poder quase sentir teu cheiro, e me aceitar de volta mesmo depois de tanto tempo posto fora.
Tanto tempo imaginei o que te escreveria ao voltar e nenhuma palavra restou. O cursor permanece piscando, reticente, como há cinco anos. Falta tanto que ao escrever no diário só sobrou a frase "hoje fiz sopa". Falta tanto quanto a falta que me fazes. Falta tanto quanto ter que te escrever mensagens cifradas para dizer que tudo vai voltar ao seu lugar. Falta tanto quanto poder te escrever tudo o que senti nesses últimos dias e meses e ano. Desaprendi as despedidas, fico cada vez pior na arte de te dizer adeus. Meu texto não termina, e só me resta te dizer que hoje fiz sopa e que, mesmo que eu não volte mais, vai ficar tudo bem. Pelo menos é isso que me convenço diariamente.
É só mais uma segunda-feira, dentre tantas outras que virão...
quarta-feira, 3 de abril de 2013
Hacía frio
Talvez aí no seu planeta faça tanto frio que já se esqueceu de mim
E esse seu mundo, ah! Que pena, ele gira rápido demais...
Seu tempo acelerou no relógio do nunca mais
Aqui na Terra, vai tudo bem, sim.
O Sol vem todo dia me relembrar que não se morre de amor.
E todo dia ele vai ser por...
Avisando ao vento que já não é tempo do tempo que ficou pra trás.
Mas pode voltar, viu? Pode vir sem avisar, pois ainda tenho aquelas histórias pra te contar, ainda tenho a receita anotada, ainda tenho aquele vinho pra se tomar.
E de falta de amor, você vai ver que também não morrerá.
E esse seu mundo, ah! Que pena, ele gira rápido demais...
Seu tempo acelerou no relógio do nunca mais
Aqui na Terra, vai tudo bem, sim.
O Sol vem todo dia me relembrar que não se morre de amor.
E todo dia ele vai ser por...
Avisando ao vento que já não é tempo do tempo que ficou pra trás.
Mas pode voltar, viu? Pode vir sem avisar, pois ainda tenho aquelas histórias pra te contar, ainda tenho a receita anotada, ainda tenho aquele vinho pra se tomar.
E de falta de amor, você vai ver que também não morrerá.
terça-feira, 2 de abril de 2013
No embalo
Cresci ouvindo a minha mãe dizer: "quem ama de verdade, perdoa."
Feliz é quem sabe recomeçar, um pouquinho mais sábio e com o dobro de amor pra dar.
E nessa história toda, quem é que vai me perdoar?
Amor bom é amor de bom dia, no canto do ouvido, na doçura de um aconchego, no brilho de um sorriso.
Mas a vida chega pedindo errado, perguntando de trás pra frente.
A nossa história se embriagou na cumplicidade de um café amargo.
Nas horas que se separam, nas contas para serem acertadas depois.
Mas se todo pranto tem prazo, toda essa pressa de não ter pressa nenhuma acabou demorando a chegar.
Encostei minha vida no seu ombro e prometi a cama arrumada.
Encostei-me para descansar, por um breve intervalo de tempo e acabei ficando, acabei me esquecendo de voltar.
Feliz é quem sabe recomeçar, um pouquinho mais sábio e com o dobro de amor pra dar.
E nessa história toda, quem é que vai me perdoar?
Amor bom é amor de bom dia, no canto do ouvido, na doçura de um aconchego, no brilho de um sorriso.
Mas a vida chega pedindo errado, perguntando de trás pra frente.
A nossa história se embriagou na cumplicidade de um café amargo.
Nas horas que se separam, nas contas para serem acertadas depois.
Mas se todo pranto tem prazo, toda essa pressa de não ter pressa nenhuma acabou demorando a chegar.
Encostei minha vida no seu ombro e prometi a cama arrumada.
Encostei-me para descansar, por um breve intervalo de tempo e acabei ficando, acabei me esquecendo de voltar.
sexta-feira, 29 de março de 2013
Relacionamentos são que nem sapato. Conclusão depois de ficar meia hora olhando pra todos os sapatos novos que eu tinha no guarda roupa, praticamente que eu nunca usei com medo de estragar, ou porque não são confortáveis realmente. A verdade é que nenhum sapato no início é confortável. Causa bolha, calos, assaduras, arranhões. A gente demora pra se acostumar a eles. Melhor dizendo, a gente demora pra se adaptar ao novo jeito de andar com eles. Com certeza tropeçamos e queremos logo tirá-los no final do dia, com aquela sensação de alívio do pé descalço. Pois é. Aqueles sapatos que antigamente machucavam nossos pés, depois de um tempo, se tornam um encaixe perfeito.
Enfim, depois de meia hora fitando meus novos pares, fiquei procurando aquele velho, de longa, longa data, pensando que eu infelizmente e provavelmente o teria doado. Foi quando eu vi ele escondido, embaixo de todos os outros, esquecido há um tempo. O preto não brilha tanto, o salto está meio torto, o bico esfolado. Mas ele é familiar. É conhecido. Meus pés cansados se sentem em casa com ele. Muito melhor que começar tudo de novo com um novo par: duro e sem nenhuma história pra contar. Vou aproveitar os meus velhos sapatos... enquanto meus pés ainda não estiverem prontos para um novo relacionamento.
Enfim, depois de meia hora fitando meus novos pares, fiquei procurando aquele velho, de longa, longa data, pensando que eu infelizmente e provavelmente o teria doado. Foi quando eu vi ele escondido, embaixo de todos os outros, esquecido há um tempo. O preto não brilha tanto, o salto está meio torto, o bico esfolado. Mas ele é familiar. É conhecido. Meus pés cansados se sentem em casa com ele. Muito melhor que começar tudo de novo com um novo par: duro e sem nenhuma história pra contar. Vou aproveitar os meus velhos sapatos... enquanto meus pés ainda não estiverem prontos para um novo relacionamento.
terça-feira, 26 de março de 2013
Há quem lembre
Há quem falará de nós. Duas meninas aprendendo com as lições que a vida ensinava. Aos 14 anos, conheci um tipo de conexão que eu não sabia que poderia existir. Pelo menos, não pra mim. Conheci uma garota que mudou minha vida. Conheci um novo modo de ver o mundo, de ver as pessoas, de ver a mim mesma. Conheci não só uma pessoa incrível, inteligente, perspicaz, sagaz e generosa. Conheci a pessoa certa para ocupar um cargo muito especial na minha vida. Um papel que ninguém melhor que ela poderia desempenhar, e ainda, graças ao nosso jardim, desempenha. Nunca vou entender como construímos essa ponte tão florida. Tão bonita. Tão infinita. Nosso entendimento é sublime. É feito de puro amor. Cuidados e carinhos sempre foram marca registrada de nossa cumplicidade.
Há quem lembre de duas meninas andando pra cima e pra baixo numa cidade que costumava ser pequena. Duas meninas cheias de sonhos jogadas na grama, negando a existência de uma aula de matemática na sala ao lado. Eu estava no início de tudo, diante de tudo, diante dela. Despertei para o que sou hoje graças a ela. Graças as nossas conversas ricas em reflexões. Graças aos nossos gostos e prazeres convergentes. Graças ao nosso amor. Há quem lembre da nossa amizade. De como costumávamos fazer tudo juntas. De como tu sempre estavas lá por mim. Há quem lembre de como éramos diferentes, mas mesmo assim, nossa combinação era exatamente como deveria ser. Há o cais, o café, o bar da escola. Há girassóis, rosas amarelas, e barras de chocolate Napolitano. Há lágrimas, risos, deboches e tristezas tão profundas que jamais serão contadas da maneira que nós as vivemos. Nossas memórias estão lacradas no fundo do meu coração. Memórias que ninguém, nunca, terá como competir. Não porque não existem outras pessoas incríveis por ai... Claro que não. Mas porque aquela riqueza de descoberta nunca conseguirá bater outras. A entrega para ela nunca poderá ser comparada a outras entregas, mais sutis, menos puras. Hoje o mundo não é o mesmo para mim do que naquela época. Estou mais dura, sim. Porém, meu amor ingênuo e puro está guardado, guardado para ela. E agradeço por isso todos os dias.
Há quem saiba dessa amizade. Há quem inveje. Quem admire. Quem não entenda... Mas com certeza, ela está no ar dessa cidade que logo vou abandonar também. Está no cheiro da maresia espalhada pelos cantos estreitos das ruelas daqui. Está nas fotos, nas cartas, atrás das fotos 3X4. Está em nós. Está em quem conviveu com a gente para poder lembrar também, de duas meninas, duas meninas que compartilharam tudo que havia para ser compartilhado e vivido na mais pura simplicidade das rotinas possíveis... mas não menos inesquecíveis.
Há quem lembre de duas meninas andando pra cima e pra baixo numa cidade que costumava ser pequena. Duas meninas cheias de sonhos jogadas na grama, negando a existência de uma aula de matemática na sala ao lado. Eu estava no início de tudo, diante de tudo, diante dela. Despertei para o que sou hoje graças a ela. Graças as nossas conversas ricas em reflexões. Graças aos nossos gostos e prazeres convergentes. Graças ao nosso amor. Há quem lembre da nossa amizade. De como costumávamos fazer tudo juntas. De como tu sempre estavas lá por mim. Há quem lembre de como éramos diferentes, mas mesmo assim, nossa combinação era exatamente como deveria ser. Há o cais, o café, o bar da escola. Há girassóis, rosas amarelas, e barras de chocolate Napolitano. Há lágrimas, risos, deboches e tristezas tão profundas que jamais serão contadas da maneira que nós as vivemos. Nossas memórias estão lacradas no fundo do meu coração. Memórias que ninguém, nunca, terá como competir. Não porque não existem outras pessoas incríveis por ai... Claro que não. Mas porque aquela riqueza de descoberta nunca conseguirá bater outras. A entrega para ela nunca poderá ser comparada a outras entregas, mais sutis, menos puras. Hoje o mundo não é o mesmo para mim do que naquela época. Estou mais dura, sim. Porém, meu amor ingênuo e puro está guardado, guardado para ela. E agradeço por isso todos os dias.
Há quem saiba dessa amizade. Há quem inveje. Quem admire. Quem não entenda... Mas com certeza, ela está no ar dessa cidade que logo vou abandonar também. Está no cheiro da maresia espalhada pelos cantos estreitos das ruelas daqui. Está nas fotos, nas cartas, atrás das fotos 3X4. Está em nós. Está em quem conviveu com a gente para poder lembrar também, de duas meninas, duas meninas que compartilharam tudo que havia para ser compartilhado e vivido na mais pura simplicidade das rotinas possíveis... mas não menos inesquecíveis.
Atualizações Sentimentais
Meu amor, não sei o que acontece por aqui, mas tenho a sensação de estar entrando a terceira primavera seguida. Por essas bandas, a natureza se equivocou e vem enchendo as árvores de flores. No clima floral, nossa calandiva também está permanentemente florida desde outubro, toda laranja, cheia de vida e logo precisará ser transplantada para que possa continuar crescendo. Tu precisavas estar aqui para ver isso.
Asfaltaram as duas ruas próximas da nossa casa, tu não reclamarias mais das crateras no meio da avenida. Houve um evento na praça do coreto, aquela por onde passávamos quase diariamente, que a encheu de crianças e famílias e a ocupou da forma como sempre concordamos que praças deveriam ser ocupadas. Chegaram alguns livros que há tempos estavam em nossos desejos e completei a biblioteca com mais uma estante, que já está praticamente lotada também. Houve uma tragédia, um incêndio; morreu o Amigo, o cachorro do teu avô herdado pelo teu pai. Também nasceu o filho dos amigos. E fizemos por aqui bons e grandes amigos. Nosso canto tem novos ares por causa da disposição dos móveis. A casa que gostamos na subida da rua está à venda. O prédio aqui perto está ficando pronto, só imagino como adoraríamos a vista dos últimos andares. Aqui do lado abriram uma oficina que faz barulho o dia inteiro. Construíram um muro que deu o que falar aqui na cidade, sabia? Tu precisavas estar aqui para ver isso.
Aprendi a operar com segurança uma panela de pressão - e aprendi que tirar a pressão levantando a válvula não faz a panela explodir, como minha mãe sempre me dizia e eu repetia para ti. Aprendi a pular por cima da bagunça e sair de casa para me divertir com a Helena, como tu sempre havia sugerido. Aprendi a me virar em espanhol. Aprendi a otimizar o tempo. Meu celular se espatifou num dia e foi dessa pra uma melhor. Continuei assistindo todos os campeonatos possíveis e imagináveis de tênis. Conheci algumas músicas legais, vi documentários interessantes. Chegaram muitos postais. Tenho pintado mais as unhas. Li muita literatura nesse tempo da tua ausência, precisava preencher teu espaço com histórias quase tão boas quanto as que improvisavas para mim todos os dias. Arrecadei mais três livros da Isabel Allende para aumentar minha paixão; um deles, li em um dia. Comecei a ser mais segura de mim mesma, meu amor, como mãe e como mulher. Tirei nove numa prova, mesmo com casa, Helena e algum cansaço nas costas. Tu precisavas estar aqui para ver isso, tu estarias orgulhoso de ver isso.
Mesmo com tanta coisa acontecendo, há algum tempo todos os dias são iguais, contabilizando as saudades na descida da Câmara e te contando com o coração tudo o que não posso te mostrar com teus próprios olhos. Já se foi dez dias, vinte, um mês, dois, foi a metade, o pior já passou, foi três e agora quase quatro. E parece que o tempo continua se arrastando, todos os dias as mesmas cenas, as mesmas perguntas. Tu estás presente no cotidiano, presente nas conversas, nos passeios, na escola da pequena e nas aulas que frequento. Tu estás presente em cada livro que não consigo encontrar. Tu precisavas estar aqui para ver isso. Tu, definitivamente, precisas estar aqui. Nós precisamos de ti, da tua presença bagunceira e teu espírito divertido, das tuas noites insones perambulando com um livro embaixo do braço, das invenções culinárias e das toalhas penduradas pelas portas da casa. Queremos mesmo sem isso, queremos de qualquer jeito, porque agora sabemos que não precisamos. Que te queremos aqui. E por não precisar, te quero ainda mais.
Estou sempre te esperando.
domingo, 24 de março de 2013
Histórias para Helena
Três meses de jejum e escrevo mentalmente todos os dias para ela, Helena. Escrevo para o dia em que se tornar adolescente, para o dia que quiser marcar a pele com fatos inesquecíveis, para aqueles dias onde a felicidade dominar de forma explosiva ou para aqueles onde o fim da tristeza não for visível a olho nu. Para que ela saiba que todos temos os mesmos dramas, mas que mesmo assim os seus serão únicos, que serão ouvidos por uma amiga compreensiva.
Sonho com o dia em que me perguntará sobre meus namorados. Com os dias que fará as contas sobre o tempo do meu casamento e sua idade e que constatará que, mesmo tão jovens, não casamos grávidos e que ela foi uma linda consequência do amor que nos transbordou desde o primeiro momento. Imagino as histórias, direi os nomes, os endereços se os souber, permitirei que conheça o meu passado, minha vida, meus amores, minhas desilusões, desnudar minha alma perante esse ser frágil que me conheceu desde seu primeiro instante de vida e que me gerou mãe. Nós vamos encolhendo diante dos filhos, meu bem. A grandeza da sua inocência, as roupas que deixam de servir rápido e as lições diárias de amor e compreensão fazem com que nos tornemos todos os dias um pouco menores ao lado desses gigantes, os filhos. Sonho com o dia em que eu dormirei no seu colo. Que ela será meu primeiro e último refúgio de intimidade e carinho, que ela foi e sempre será minha grande amiga.
Penso em imprimir páginas desse blog adolescente, em dar-lhe um punhado dos meus sofrimentos para que ela os conheça, para que pergunte quem os causou, para que saiba que também fiz alguém sofrer. Não penso em mudar a história, não cogito ser a mãe puritana. Quando chegar o tempo, ela saberá de tudo que quiser saber, sem mentiras, sem omissões, sem culpas. Direi a ela que o melhor gosto do passado fica com aquelas pessoas que nunca imaginamos que seriam tão marcantes. Contarei tudo porque acho linda a cumplicidade que pais e filhos podem ter quando se empenham em uma relação baseada na confiança e na verdade e porque queria muito ter tido essa relação quando foi a minha vez. É sempre a nossa vez.
Registro os fatos, tento relembrá-los da forma mais verídica para que a poeira das memórias não me faça cometer injustiças ao contar essas histórias. Talvez seja por isso que vivo revisitando as mesmas velhas memórias, para que estejam sempre frescas, os odores, os lugares, como um livro que tiramos da estante para arejar suas páginas.
Enquanto esse dia não chega, é hora de juntar os brinquedos espalhados pelo chão e arrumar a mochila para a escolinha amanhã.
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