terça-feira, 24 de agosto de 2010

Bom Dia


Eles eram a água e o vinho. Ela era o vinho, um bom vinho, com qualidades nobres, um vinho jovem, por assim dizer, mas, mesmo assim, um vinho de grande qualidade.  Um vinho de uma família nobre, orgulho por suas qualidades, como todo o bom vinho, exigiria do seu degustador uma tripla habilidade e uma extrema sensibilidade: exige o olhar, o nariz e a boca, esses três, sem falta. Mais do que três sentidos, requer-se sensibilidade dos três sentidos, sensibilidade extrema, não basta sentir, não basta ver, não basta cheirar, é preciso uma conjunção quase sobrenatural para compreender o que se vê, o que se cheira, o que se sente. É isso que esse vinho exige, como uma mínima moralia existencial, ou seja, ou o degustador tem essa habilidade ou perdeu de provar o melhor dos vinhos. O vinho é a bebida dos deuses para alguns, cultuado e adorado por gerações, passou pela idade da pedra, pelos egípcios, pelos cânticos chineses (receitando-o para aliviar a tristeza). E ela era o vinho que via em outras famílias de vinho a qualidade, a nobreza e o retinto igual ao seu, vinhos com traços jovens, verdes, por assim dizer, com um bouquet jovem, que precisariam ainda de tempo para saber se se tornariam um bom vinho ou eram apenas um vinho. Dela, todos sabiam, a espécie de uva e a cepa que pertencia, seu bouquet encantava a todos revelando traços que só esse vinho tinha, nenhum outro seria capaz, por isso vivia entre os melhores vinhos e assim seguia, de garrafa em garrafa, de bouquet em bouquet procurando uma conjunção capaz de produzir uma uva e um vinho superior. Ele era a água, observava com distância tudo, invejando-a por suas qualidades, sem que pudesse se aproximar, afinal era simplesmente uma H2O, duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, era facilmente trocável por qualquer outra bebida que se fosse encontrada à mesa, bastava um daqueles refrigerantes, aos quais alimentava uma ojeriza incrível, que seria trocado. Diferente do vinho, quando muito era insípida, inodora e incolor, qualidades precípuas de uma boa água, mas que, em geral, não correspondem as qualidades apresentadas. Ficava extremamente triste por não ter degustadores em seu entorno, debatendo suas qualidades, sua família, seu bouquet. Aliás nem bouquet tinha, o que deixava a água extremamente entristecida. Ela nutria uma admiração e paixão por aquele vinho, que deixava todos à mesa estupefatos. Essa atitude gerava riso entre os outros vinhos. Ela, que era um vinho nobre, olhou com bons olhos o amor da água, mas sentia não poder corresponder, por ser um vinho. Não menosprezou ou fez troça do amor d’água, apenas não via compatibilidade. A água seguia indelével no seu desejo de estar com aquele vinho, sabia que tinham diferenças, que eram diferentes, mas e daí, por que não a água com um vinho? O vinho começava, pouco a pouco, a acreditar numa conjunção improvável e dessas improbabilidades o vinho começou a querer estar com a água. Num dia desses, desses que são tão mágicos que não precisam ser datados, ela foi de mansinho e ingressou na garrafinha d’água, misturaram-se e, dizem os especialistas que presenciaram o fenômeno, que ali surgia o melhor vinho já conhecido na história. Os outros vinhos caíram em inveja, as águas disseram que aquilo seria fugaz, mas até hoje, dentro de uma dimensão de tempo, que só os deuses sabem contar, essa conjugação permanece intacta, alimentada pelo amor entre o vinho e a água. Te amo.

Beijos, Hector

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