quarta-feira, 13 de outubro de 2010

E finalmente chegará um dia onde eu vou criar coragem e vou romper com esse silêncio. E nesse dia, mesmo que o teu rosto esteja cheio de rugas e meio desfeito pelo tempo, minha memória fará questão de refazer reorganizar rearranjar todos os teus traços e voltarei a te enxergar com os quase dezesseis com que te encontrei, voltarei a me enxergar no espelho como aquela velha que batia na porta e novamente nela baterei, meio escorada meio amparada por aquela parede rosada naquela ruela que demorei muito tempo para aprender o nome mas que nesses últimos trinta e cinco anos  - ou quarenta ou até quarenta e cinco, já não sei mais há quantos não te vejo - nao me sai nunca mais da cabeça, aquele nome comprido e esquisito que eu prefiro não escrever nesse diário; sei que encontrarei nesse dia novamente aquela porta branca da maçaneta engraçada que me deixava esperando do lado de fora e encontrarei mais uma vez teus olhos de menino encravados numa pele enrugadinha ou gordinha ou qualquer outro simpático diminutivo que dê a ti a graça com que te conservas nas minhas memórias. E nesse dia talvez mais uma vez eu te pegue pela mão ou te dê aquele beijo estalado na bochecha que ainda deve ser tão gordinha como costumava ser sob a sombra daquela mesma árvore há tantos verões atrás ou te encontre mesmo sem saber teu próprio nome como pode acontecer de um dia eu perder completamente os sentidos que me sobram mas com a certeza de que sem saber meu próprio nome eu recordarei teus olhos verdinhos corroídos por uma ferrugem natural e recordarei diversas noites sob a lua na beira da praia mesmo sem saber direito quantas primaveras se foram sem que eu pudesse ter o prazer de pegar a tua mão ou qual seria o nome do par de olhos com que sonhei por toda a minha vida. São todos os devaneios de uma velha louca que relembra um par de olhos, um cheiro, uma música e uma mão - e mais o nome da rua e a casa rosada e a portinha branca -, são as vontades de escrever a ti de quem já nem sei se lembro como pronunciar o nome, de te contar que vivi muito bem, obrigada, que passei feliz todos os últimos anos que pareceram décadas e todas as décadas que pareceram cada uma um milênio inteiro perdida a pensar em coisas que não deveria e me culpando por não poder pensar nas coisas que realmente pensei, de te contar do peso e te pedir desculpas por ter te deixado - mesmo quando sei que tu me deixaste também -, mas eu era para ter insistido, esperneado, batido muitas outras vezes na velha portinha branca e não só ter virado as costas deixando uma mensagem e um beijo no rosto e do não saber que cada um desses dias de ausência seria um peso que tantos anos depois eu descobriria que nunca se fora completamente e que a cada dia que passa a memória se torna mais viva e completa e enfeitada - deve ser o efeito dos meus remédios ou desses tantos anos que fazem com que a história adquira um brilho que originalmente não tinha e talvez nunca tivesse caso algo no rumo da coisa tivesse se dado de modo diferente. Te diria que não faria nada diferente e relembraria da imensa briga que comprei por ti - aquele outro que até hoje deve me odiar também - e te diria que depois de tudo também não mudaria nada, tua presença também se fez mais necessária nos meus sonhos do que na minha vida. Te agradeceria por manter por tantos anos o meu coração quente, te agradeceria por ter ido embora.
Te agradeceria por me fazer sentir um amor que eu jamais sentira.
Vou pegar o primeiro ônibus, quem sabe seja hoje o dia de bater à tua porta. Espero não te encontrar tão velho a ponto de não me reconhecer. Espero te encontrar tão jovem que eu consiga te encontrar. Tão jovem que eu possa fazer o que talvez sempre quis: me encontrar de volta de onde me tomou teus olhos.


"De você, não esqueço jamais."

Nenhum comentário:

Postar um comentário