Foi um dia comum, ontem. Até que ela parou e, na saída do restaurante, acenou para uma criatura visivelmente invisível e longamente conhecida dos frequentadores do local. Heleninha parou, encarou o velho senhor maltrapilho que pedia moedas em um copo de requeijão e imediatamente se dirigiu a ele, abanando efusivamente. Ela queria me ensinar que nós construímos a invisibilidade daqueles que estão ao nosso lado. Como todos os outros, eu fingia - e me envergonho profundamente disso - que ele não estava ali. Fingia que não via a sua miséria, sua tristeza, sua dificuldade para falar e as mãos corroídas pelo tempo. Ignorei a sua decrepitude para não ter que encarar a miserável que a vida fez de mim. Ela parou, tirou o bico da boca e logo ofereceu ao senhor, que riu. Naquele momento, ele foi vestido da visibilidade de que o privamos todos os dias, enquanto não encaramos suas misérias para não esbarrar na nossa própria mesquinharia. Ela parou e conversou na sua língua ininteligível com o senhor invisível, que respondeu prontamente. Senti vergonha de mim e, confesso, não agi para mudar a minha atitude. Estava abismada com a lição que tinha acabado de aprender com ela, tão pequena, tão leve e tão certa. Ela que não consegue ver os mantos de invisibilidade a que condenamos os nossos semelhantes, ela que ainda enxerga a dor dos outros como se fosse sua, ela que me mostrou que ele é tão visível quanto a "mama", que ela chamou em seguida. Me aproximei. Ele era real, era um homem, tinha os olhos tristes de quem só observa e vê os outros passando. Ele tinha uma fala contida, quase muda, de quem se acostumou a não ser ouvido.
O senhor maltrapilho e a bebê com passos ainda desequilibrados me ensinaram que os invisíveis somos nós que fazemos; me despertaram de um profundo sono de insensibilidade. Me deram uma segunda chance.
Ela deu tchau. Os olhos dele não saíram mais da minha memória.